O brasileiro não tem um dia de paz. A frase não é minha: você já deve ter escrito ou lido tal sentença por aí. Uma reação um tanto comum ao lidar com o noticiário político, diga-se de passagem, mas a velha fama do povo que ri de si mesmo não tem sido suficiente para atravessar esses tempos. A sensação é de estarmos numa espiral de absurdos.
É fato que, num País tão desigual, precisamos falar em “Brasis”, mas com alguma frequência me pergunto em que tipo de "realidade" paralela tem vivido quem ainda não se deu conta disso.
Numa só semana, infelizmente, não é difícil apontar contrassensos: enquanto já tem quem fale em uma terceira onda da pandemia de Covid-19 sem nem mesmo termos saído da segunda, o presidente da República sorria, no último domingo (23), diante de pessoas amontoadas sem máscaras durante um passeio de moto no Rio de Janeiro.
Sim, um passeio de moto em meio a uma pandemia. Mais do que isso, um ato político com direito a um ex-ministro militar no palanque, transgredindo as normas das próprias Forças Armadas.
Sem demonstrar a menor preocupação com medidas sanitárias de prevenção à disseminação do novo coronavírus, a maior autoridade do País não só dá mau exemplo. Debocha do sofrimento do próprio povo. Dos que perderam entes queridos, dos que aguardam leitos num sistema de saúde sobrecarregado, dos que precisam ir às ruas para enfrentar a fome.
Não é possível, aqui, fazer qualquer simetria entre reivindicações de quem protesta por comida, emprego, vacina, e pautas dos que optam por esbravejar contra a democracia, agredir jornalistas ou quem quer que seja – tudo isso colocando em risco ainda maior a saúde pública. Uma cena injustificável, a do último domingo.
Proponho um exercício de cidadania e, além disso, humanidade: na próxima vez em que sair de casa, observe quantas famílias você vê nos cruzamentos em busca do mínimo para sobreviver. É algo que me diz muito. Com quais absurdos estamos nos indignando?
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E como paz não tem sido mesmo o nosso forte pelas bandas de cá, o desserviço mais recente da mesma figura, a que ocupa a cadeira presidencial, foi questionar novamente, no Supremo Tribunal Federal (STF), medidas restritivas adotadas por governadores para tentar frear a circulação viral em alguns estados.
Não é a primeira ação do tipo. Jair Bolsonaro (sem partido) tenta, mais uma vez, forçar confronto com o Poder Judiciário. A insistência na narrativa covarde, sobre a limitação de atuação supostamente imposta pelos ministros do STF em conjunto com o Congresso Nacional, é outro dos absurdos com os quais já está difícil conviver.
Se a questão, desde o início, é salvar vidas e recuperar a economia, a vacinação em massa certamente cumpriria com mais efetividade tal papel. Bem, há inclusive uma CPI em curso no Senado para investigar o que nos trouxe até aqui, o que inclui, claro, o atraso na imunização.
A esta altura, contudo, ainda tem na mesma CPI senador questionando eficácia de vacina. Vacina aprovada que tem salvado vidas. O que virá amanhã na espiral de absurdos chamada Brasil? Sem ousar responder, prefiro me apegar ao que, para mim, é certeza: não podemos nos acostumar.