O mito Odete Roitman na história do Brasil

Personagem é sucesso em dois Brasis distintos

Escrito por
Silvero Pereira verso@svm.com.br
(Atualizado às 14:19)
Legenda: Débora Bloch interpreta personagem que parece saber que já nasceu lendária
Foto: Globo/ Fábio Rocha

Não se fala em outra coisa e, aqui na coluna, não seria diferente. Odete Roitman é o nome do mito, do ícone, da vilã das vilãs da teledramaturgia brasileira e que, nesta semana, foi assassinada em Vale Tudo, um momento canônico na vida de qualquer telespectador. Contudo, mais do que quem matou Odete, eu me pergunto agora: o que faz um personagem se tornar inesquecível e emblemático para a história?

Do ponto de vista técnico, há uma fórmula quase mágica de construção de personagem, que envolve escrita e interpretação. Odete Almeida Roitman, no entanto, vai além. Apresenta ao público muito mais do que uma simples vilã rica, mas a nossa complexidade humana e moral somada ao timing histórico e ao impacto cultural.

Eu assisti as duas versões da novela - a escrita por Gilberto Braga, em 1988, e a escrita por Manuela Dias, em 2025 - e posso afirmar que são novelas bem diferentes, distantes até. Três décadas se passaram de lá para cá e temos dois Brasis distintos como cenário também, mas a personagem central parece permanecer incólume para o público. Odete é um sucesso.

Beatriz Segall construiu genialmente uma vilã esculpida em mármore: fria, aristocrática, que não grita, não desaba, não se titubeia. Um reflexo de uma elite brasileira pós ditadura militar, que era muito segura de seus privilégios e de sua moral. A atriz trouxe uma ideologia encarnada nos gestos comedidos, na postura, na crueldade e no seu olhar único.

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Débora Bloch dá vida a uma personagem que parece saber que já nasceu como uma lenda. É como se ela fosse ciente de que herdou uma vilania ímpar de outra grande atriz. Sinto que Débora humanizou Odete, a aproximou do público. Segue igualmente má, porém mais performática, mais carnal, uma mulher sarcástica e viril, uma milionária que, apesar do poder econômico, sabe que ainda é atravessada pelo machismo, pelo etarismo, que não possui o controle absoluto.

A Odete de Débora ainda vive em um Brasil onde a elite comanda, mas que sabe que os discursos precisam ser mais moderados e modernos. Ela entende o mundo de aparências em que precisa apresentar um simulacro de mãe, mulher e empresária ideal, mesmo que na realidade não seja nada disso.

As duas versões têm muito em comum também: Beatriz e Débora parecem que compreenderam que Odete Roitman não é só um personagem, é um diagnóstico de país.

Enquanto uma usava o silêncio como um golpe fatal, a outra traz um sorriso irônico que é pura armadilha, ambas mantenedoras da hipocrisia do alto escalão da sociedade.

Beatriz Segall criou a vilã que o Brasil temia e torcia por sua morte como castigo. Débora revive essa mulher que o Brasil precisa reconhecer que segue firme nas elites. É quase como uma continuação da história, mas que, dessa vez, paradoxalmente gostamos e até torcemos pela vilã, desejando não mais a sua morte, mas a punição de seus crimes.

Se na vida vale tudo, não sabemos, mas, sem dúvidas, mais uma Odete Almeida Roitman entra para a história.

*O texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor