Já parou para pensar no quanto limitamos a arte e aprofundamos a morte em vida na sociedade?

A cultura também pratica a “política da morte” ao não incluir

Foto: Shutterstock

Antes de iniciar a leitura da coluna desta semana, aviso que irei tratar de uma temática que talvez você não se identifique ou não se enquadre em nenhuma das descrições abaixo. Mesmo assim, sugiro que continue a ler.

NEGRO - INDÍGENA - PCD - LGBTQIA+ - MULHER - GORDO - POBRE - ESTUDANTE DE ESCOLA PÚBLICA - REFUGIADO - EM SITUAÇÃO DE RUA - ADICTO

Recentemente, durante a preparação para o meu novo espetáculo, toda a equipe participou de uma formação sobre acessibilidade dentro do campo cultural. O intuito era de compreender e pensar em ações que podem ser realizadas para garantir acesso a pessoas que, geralmente, estão à margem.

A formação foi realizada por Cristiane Muñoz - atriz, palhaça, educadora, diretora teatral, palestrante, PhD em Artes Cênicas e assessora de acessibilidade e inclusão. Cristiane deu uma aula sobre tornar os meios acessíveis e nos levou a pensar para além do campo profissional, nos provocou sobre a inclusão e o acesso no dia a dia, no cotidiano.

Veja também

Mulher, autista, mãe e professora, ela trouxe até nós as diversas cicatrizes sociais que carrega em suas vivências, não como exemplificação, mas como comprovação de uma sociedade extremamente excludente e praticante de “políticas de morte”.

Quando pensamos em morte, imediatamente associamos ao que não vive mais, o que deixa de existir, mas a política da morte, apesar de também se tratar de um extermínio, não está no sentido literal, mas nas inúmeras e diversas interferências, atitudes, sufocamentos de existência por falta de políticas públicas e de ações eficazes da sociedade civil que garantam espaços de inclusão, compreensão de diferenças e respeito a elas.

Um corpo se sente vivo quando impedido de usar o banheiro por conta de preconceitos de gênero? Um jovem de escola pública se sente vivo quando precisa abandonar os estudos para trabalhar? Um cadeirante se sente vivo quando vê seus caminhos ou espaços limitados?

Um jovem autista se sente vivo quando precisa lutar por uma vaga numa escola despreparada para sua condição? Uma mulher se sente viva quando tem a palavra duvidada diante um assédio? Uma pessoa em situação de rua se sente viva quando não consegue o mínimo pra existir dignamente?

Nossa sociedade está cheia de mortos-vivos, pessoas lutando diariamente pelo básico, anônimas, invisíveis, inexistentes. Quantos de nós vivem em constante condição de necessidade de superação? Estamos agarrados a uma estrutura sociopolítica que nos diz o tempo inteiro: “você não faz parte desta roda”.

A arte não escapa dessa lógica e também pratica a “política da morte”, seja selecionando aqueles que não terão acesso, como transferindo responsabilidade de inclusão a quem também precisa ser incluído. Em uma sociedade de remendos, ações afirmativas de acessibilidade no campo cultural de editais, por exemplo, acabam sempre ficando a cargo dos próprios artistas.

É claro que temos um papel importante na construção da democratização da cultura, mas não cabe a nós fazermos sozinhos esse papel. Gestores, leis, políticas, reeducação e formação também são essenciais.

Assim como adaptou-se espacialmente os lugares com rampas, corrimões, banheiros e assentos, equipamentos de cultura (públicos e privados) deveriam ser obrigados a adotarem profissionais que garantam o acesso aos produtos para todos os tipos de público, do intérprete de Libras à política de cotas para pessoas de baixa renda. Precisamos parar de fazer o mínimo e pensar de forma macro na existência e resistência das pessoas.

 

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor



Assuntos Relacionados