A arte não me fez ser 'alguém na vida'

Legenda: Ganhei reconhecimento nacional, prêmios, honrarias e essa outra virada de chave fez eu me atentar que a arte me permitiu algo muito mais importante

Se você costuma ler essa coluna ou me acompanhar nas redes sociais, já deve conhecer a minha história e como a arte salvou a minha vida, mas hoje quero falar com um pouco mais de profundidade sobre o verdadeiro papel dela na minha formação humana e como me identifico enquanto sujeito, enquanto Silvero.

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Nasci em Mombaça, uma cidade que fica a 300km de Fortaleza, no sertão do Ceará. Estudei em escola pública e passei toda minha infância na Rua Paes de Andrade, muito conhecida como Buraco da Gia. Morava em uma casa muito simples com minha família, onde não tinha água encanada e nem banheiro. O piso era de terra batida e a gente tinha que molhar todo dia para a poeira não subir.

Na minha infância, não houve espaço para brincadeiras. Meu tempo era dividido entre o trabalho, a escola e outras atividades nada infantis, como fazer longas caminhadas para buscar água potável em cacimbas distantes. Minha cidade nunca teve um teatro ou uma escola de artes.

Na verdade, arte em Mombaça se resumia a desenhar, pintar ou confeccionar cestas de garrafas pet - atividades vistas como passatempo, nunca como trabalho.

Entretanto, três fatores mudaram minha percepção sobre o fazer artístico: a vitrola de meu pai e os discos de Luiz Gonzaga, Nelson Gonçalves e Balão Mágico; as festas juninas, onde podíamos dançar na quadrilha e interpretar no casamento matuto; e a televisão, janela que me levava a outros mundos, que me fez brincar de imitar filmes, novelas e programas de entrevistas, um universo paralelo que meu eu-menino criava para escapar da vida real, da pobreza, da fome e da sede.

Além das imensas adversidades da vida, da realidade dura do sertanejo e da falta de promoção à arte, ser uma pessoa LGBTQIA+ nesse contexto também era extremamente doloroso. “Senta como homem”, “fala como homem”, “engole o choro”, “não veste isso”, “não dá pinta”, “não pode isso, não pode aquilo”. Sempre me disseram o que não ser.

Aos 13 anos, decidi sair de casa para morar em Fortaleza com o intuito de estudar e virar um “doutor”, mas foi aos 17, que fui surpreendido ao assistir, no auditório da Escola Técnica Federal (IFCE), uma peça de teatro com atores profissionais. Fiquei tão comovido que me matriculei na disciplina de artes na categoria iniciação teatral.

Da disciplina, fui para o curso técnico, depois para a graduação em Artes Cênicas, da graduação para a licenciatura, lecionar no Curso de Princípios Básicos de Teatro, do Theatro José de Alencar. Fundei três companhias: Grupo Parque de Teatro, Inquieta Cia. de Teatro e Coletivo Artístico As Travestidas. Bom, a partir desse ponto, tudo mudou.

Ser artista era uma decisão irremediável. Isso porque eu havia encontrado um ambiente que, à princípio, me acolhia exatamente como eu era, não julgava as roupas que eu vestia, me abraçava e me auxiliava nas dificuldades emocionais, intelectuais e financeiras.

O teatro era uma possibilidade de vida.

Dos palcos, fui levado para a televisão e para o cinema. Ganhei reconhecimento nacional, prêmios, honrarias e essa outra virada de chave fez eu me atentar para o fato de que a arte não me fez “ser alguém na vida”; ela me permitiu algo muito mais importante: ser eu mesmo, olhar para meus medos, minhas dificuldades e fazer disso potência na minha produção, no meu jeito de trabalhar, de escrever, produzir e atuar.

Não sei dizer se escolhi ser artista ou se fui arrastado para esse universo, só sei que a arte salvou um menino de ser massacrado pelo preconceito, acolheu os sonhos e as fantasias daquela criança e deu a ela um mundo para ver, pensar, questionar, provocar e transformar.

No fim das contas, isso é o que há de mais bonito na arte: a simples e revolucionária experiência de SER.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.