As recentes cenas de pessoas lutando para sobreviver, seja de gigantescas filas para recebimento de sobras de pelancas e ossos no Rio de Janeiro, seja a busca de comida no caminhão de lixo em Fortaleza, revelam a face cruel de uma das mais perversas crises estruturais agravadas pela pandemia: a fome!
Para além da indignação, choque ou revolta, é preciso construir uma agenda pública urgente pela segurança alimentar e a dignidade humana. Entendo por agenda pública compromissos e tarefas pelo bem comum, pactuada por setores organizados da sociedade no sentido de pautar e direcionar a grande política, e seus atores como políticos, partidos e gestores. Do contrário, as sequências de tragédias cotidianas constroem um
anestesiamento coletivo, psicológico e social, que desemboca na imobilização e na naturalização da barbárie.
Dados sobre a fome não faltam. Há 10 anos o Brasil já desperdiçava cerca de 30% dos alimentos que circulavam na cadeia produtiva (FAO, 2011). Uma década depois, esse quadro deve estar bem pior, conforme os diversos episódios espalhados pelo país, de procura de alimentos em lixos.
Contraditoriamente, para alguns empreendimentos, ossos, pés e carcaças agora são mercadorias vendidas. No final de 2020, tínhamos 19,3 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave no país (VigiSAN, 2020), dentre as quais 11,5 milhões (60%) são moradoras de favelas (IBGE, 2020; DataFavela 2021). Enquanto
isso, há uma parcela da sociedade que consome em excesso, pois a média nacional de desperdício é de 42 kg de alimento por brasileiro a cada ano (EMBRAPA, 2018).
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Infelizmente, os dados oficiais sobre desperdício de alimentos são muito escassos e apontam a importância dessa sistematização para balizar a construção de políticas públicas.
O Brasil é o 4º maior produtor de grãos no mundo, o primeiro em produção e exportação de soja, representando 50% do comércio internacional. Somos o terceiro em produção e o segundo em exportação de milho, respondendo por 20% das exportações totais. Nossa produção de arroz e feijão é, principalmente, para o consumo doméstico. Mas também somos o número um na produção e exportação de carne bovina e os maiores produtores e exportadores de açúcar e café, segundo dados da Embrapa. Como podemos concluir, produzimos para vender e não para alimentar as pessoas.
Segundo o Dieese (ANO), o arroz e o feijão chegaram a acumular uma alta de 64% num período de 12 meses. Hoje eles estão "apenas" 23% mais caros do que há 12 meses atrás. Contudo, esses produtos que são a base da alimentação dos brasileiros tiveram a maior alta em 8 anos. A inflação voltou a ser um dos empecilhos para a comida no prato.
De acordo com a Forbes, dos 15 empresários mais ricos do setor alimentício, 7 são do Ceará, estado em que ocorreram as cenas revoltantes de gente caçando comida no caminhão de lixo. Destes bilionários cearenses, cinco têm seus negócios na área de
alimentos.
A participação da iniciativa privada já se mostrou extremamente importante e vai se tornar mais ainda para o fortalecimento das ações de solidariedade que as organizações comunitárias estão fazendo. É preciso dividir para multiplicar!
O engajamento da sociedade, organizações e lideranças, principalmente, nas ações de enfrentamento à fome não substitui o papel do Estado. É essa instância mediadora dos conflitos sociais que tem a responsabilidade de garantir segurança alimentar e produzir políticas públicas que garantam a quase 20 milhões de pessoas o direito básico de três refeições ao dia.
Isso é urgente! Mais do que nunca, precisamos politizar nossa indignação e organizar nossa revolta. Do contrário, vamos todos protestar nas redes sociais enquanto a fome devora a esperança por dias melhores pelas ruas do país.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.