Não há história mais importante do que saber quem é, digo, quem são essas criaturas que perseguem um carro de lixo para matar a fome.
Sim, tá ok, você viu o vídeo que viralizou nas redes, você sabe que foi em Fortaleza, o lugar bonito que atrai os turistas, mas você não tem ideia de quem sejam aquelas pessoas.
No que vejo aqui, em carne e osso, a cearense Maria de Lourdes, 43 anos, contando sua história. Ela corria atrás daqueles dejetos. Em busca de alguma sustança. Era o jeito. Era não, é. “Aquele foi o pior dia, muitas mães estavam chorando de fome, foi uma correria”, disse ao jornalista Lucas Falconery, deste Diário do Nordeste, na reportagem mais importante da semana.
Importantíssima matéria. Uma coisa é ver a cena nas redes sociais, entre tantas coisas chocantes, outra é procurar saber, como Manuel Bandeira, ainda em 1947, quando avistou um bicho, meu Deus, na imundície do pátio, catando comida entre os detritos.
“Quando achava alguma coisa,/ Não examinava nem cheirava:/ Engolia com voracidade”, relata o poeta, cena carioca das antigas.
Maria de Lourdes é de hoje, de agora, urgência urgentíssima, está lá com seu marido Francisco Antônio, de 38 anos, não batendo na porta de alguém da Aldeota, mas correndo atrás do lixo da sua aldeia possível e clandestina.
“O bicho não era um cão,/ Não era um gato,/ Não era um rato./ O bicho, meu Deus, era um homem”, Bandeira vislumbra e encerra o poema.
Maria de Lourdes segue, no rumo da venta que traz a vaga ideia do que seria uma refeição completa, o cardápio que vem no vento, na brisa, a mesma fresca que chega a varandas gourmets ali da área — diz o folheto do anúncio colorido e publicitário entregue nos sinais de trânsito.
Aldeia Aldeota, estão batendo na porta, caríssimo Ednardo, para justamente (e de novo) “aperriar”.
O bicho, Bandeira, não era. É uma mulher: “Eu tenho problemas nos pés de tanto trabalhar, mas não consigo operar, dói muito quando eu ando. Cortaram minha água, cortaram minha luz, está tudo derrotado”.
Cortaram. Do verbo cortar. Sujeito plural e indefinido. Maria de Lourdes não vê nem os vultos daqueles que fizeram a conta neoliberal e passaram a faca nos mínimos direitos. Sobrou para Maria de Lourdes e família. Cortaram. Na tentativa de apagar Maria de Lourdes da história.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.