Um capitão louco, um casal desfeito e as minas de prata que deram origem a Fortaleza
Em seu diário, o holandês Mathias Beck descreve detalhes intrigantes do processo de ocupação cearense
Fortaleza nasceu holandesa, protestante e privatizada. A região teve um processo sui generis (único) e é uma interessante miscelânea das complexas relações que criaram o Brasil. Mathias Beck, fundador oficial da cidade, foi o aventureiro holandês a serviço da empresa Companhia das Índias Ocidentais, entidade “privada” que dominava Recife e tentava unificar ocupações no Recife, Rio Grande e garantir posses no “Siará”. Em seu diário, o holandês descreve detalhes intrigantes do processo de ocupação cearense.
Entre a loucuras e traições: o nascimento do Forte
A frota de Mathias Beck saiu de Recife em 20 de março de 1649, o comandante liderava três “hyates”, um barco e um bote maior. O efetivo contava com 298 pessoas no total, desses 50 eram indígenas; homens e mulheres, alguns dos quais vindos do Siará; e 10 escravizados, descritos no texto como peças.
A expedição começou com um sobressalto, quase um mal presságio, no dia 27. Beck foi informado que o comandante Coster, líder do iate Geele Sonne, “enlouqueceu”, saiu, tirou as roupas, ficou nu e deitou no chão até ser encontrado pelos guardas. Enfurecido como um louco foi isolado para não fazer mal a si nem aos outros. Como substituto assume o capitão Jacob Maes que, acometido de uma diarreia, atrasou um pouco mais a viagem.
O Siará já enlouquecia e transtornava seus pretendentes a conquistadores a quase um século, antes das expedições começarem.
No romper do dia 3 de abril, ao meio dia chegaram a “bahia do Mucuriba” ancoradouro seguro mais próximo da baia do Siará. Os indígenas Francisco Cayaba, com título de capitão, o “índio Mestre-escola João Gonçalves” - que leu o tratado de amizade dos holandeses - o sargento Pedro Nhahangá e os cabos Miguel Pindoba, Christovão Parumpaba e Gaspar Taschira trazidos para negociar com as nações daqui foram os primeiros a desembarcar.
Levaram biscoitos e vinho, promessas de amizade e respeito. No dia 4 voltaram com Francisco Aragiba, apontado como um dos líderes dos povos desta terra, as lideranças locais eram chamadas no documento de “Principaes”. Eles embarcaram e foram recebidos com toda a “possível amabilidade, cortesia e amizade”, as lideranças prometeram se reunir coletivamente com os visitantes. Os textos demonstram que havia vários líderes destacados, mas três principais eram os mais importantes a serem agradados.
Beck prometeu que, construindo um forte, ajudaria aqueles povos a se proteger dos portugueses e de qualquer inimigo, em especial aos “tapuyas que até agora lhes tinham feito guerra.” No dia seguinte, os colonizadores desembarcaram com a ordem de “sob pena corporal, que não fizessem aos índios nem a suas plantações ou roças, o menor damno ou gravame ou desgosto”. A missão era clara, travar amizade com aqueles povos.
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Muitos presentes foram distribuídos, mas um foi insólito e chamou atenção. Entre as mulheres trazidas de Recife estava a mulher do principal Francisco Caraya, que havia sido levada pelos Tapuias. Beck destacou que, resgatada, ela foi excelentemente tratada em Recife, com “honras e favores” por amor dos Nobres ao velho indígena. Este agradeceu a oferta de amor, mas recusou a esposa dizendo que aquela mulher “não era digna deles” e que nela não queria pôr os olhos.
Como oferta de paz, pediu que fosse levada de volta à Recife. A querela atrapalhou a jogada de Beck, dos três maiores líderes locais indígenas, Francisco Caraya era o que o holandês mais queria se aproximar, ele era a chave que eles buscavam.
No dia 6, após acampar na praia, os soldados foram para o outeiro Marujaitiba, onde falam de um “bello rio d’agua doce” – o nome Pajéu não aparece no relato.
Diante dos riscos e dificuldades de se ocupar a margem do Rio Siará eles optaram por aquele espaço como sendo o ideal para realizar a construção do forte, projeto do engenheiro Inglês Ricardo Caar. Ao selar acordo com os povos da região o agora aliados beberam aguardente e suco de melancia.
Franscisco Caraya, sem a mulher, visitou os holandeses e pediu pra dormir no acampamento... Dividiu a barraca com Matias Beck e, à noite, o aventureiro conduziu com cuidado a conversa para o interesse principal da Companhia holandesa: O texto fala pela primeira vez das minas de prata do Siará.
A real motivação: O brilho da Prata
O diário diz que:
O principal Francisco Caraya, de todos os índios, tem o melhor conhecimento do assunto, em razão dos seus anos e de ser conhecedor de toda esta região; a vista disso discorri largamente com o dito Caraya sobre as minas, obtendo dele a confissão de que sabe perfeitamente o lugar onde se acham... e deu-me a segurança de que estava pronto, em todo o tempo que me aprouvesse, a conduzir-me ao referido lugar, desde que primeiramente o presenteasse com um vestido, um chapeu, uma camisa, meias, sapatos e uma espada.
A partir daí, a construção do forte aparece de forma quase displicente no diário, quase como um detalhe, o que toma a narrativa a partir do dia 13 em diante é a obsessão em encontrar as prometidas minas de Prata da região. Boa parte do relato se dá na negociação de Beck com Caraya ou com líderes da região da “Parahypaba”.
O texto é na verdade uma descrição das desventuras, esperanças e promessas em torno da prata do Siará tendo o forte apenas como seu cenário e meio necessário para preparar o ambiente minerador.
Beck e seus homens ouviram não apenas a confirmação da existência das minas como aumentaram suas expectativas diante de seu potencial produtivo. Uma mina chamada “Itarema”, junto ao monte “Maraguaba” a 80 léguas de onde estavam foi prometida por Caraya.
A empolgação de Beck vira a cada página do diário frustração e impaciência com os líderes indígenas fazendo exigências em troca da perspectiva de levar os mineiros holandeses até a prata que nunca chegava. A promessa parecia mais uma estratégia de negociação, usada pelos indígenas como forma obter ganhos ao alimentar interesses e desejos dos colonizadores.
Matias Beck sinaliza, contudo, que prata foi encontrada. O diário termina com a garantia, assinada e reconhecida pelos mineiros holandeses de que as minas de Prata eram reais e promissoras. A expedição holandesa consegue montar a paliçada em meio a promessas de grandeza e riqueza. Nesse modelo se projetou Fortaleza, a fantasia de uma terra de pura prata em meios as desilusões, loucuras e delírios das experiências com coisas reais.