Uma discussão recente entre as comunicadoras Astrid Fontenelle e Gabriela Prioli tomou o Twitter. O debate foi sobre música e comida na festa de São João: a primeira defendeu tradições e o esforço de manter costumes, a segunda afirmava que todas as festas se permitem dinâmicas que atendem a desejos de mercados e públicos renovados.
O que parece apenas a velha disputa entre tradição e modernização guarda em si disputas muito mais relevantes e reveladoras de nossa ligação com Histórias e Memórias nacionais. Me lembrei das festas juninas quando fugia do fácil paladar empacotado do doce/salgado, descobri sabores como o pé-de-moleque, bolo de puba, mungunzá e – em minhas memórias – o mais estranho e atrativo dos sabores juninos: o Aluá.
Não estou entre os puristas que negam dinâmicas culturais ou cristalizam artificialmente tradições inventadas e permanentemente reelaboradas. É impossível impedir transformações do real, mas, frente a processos massivos de aculturação, defendo que festas e tradições sejam espaços de pluralidade e exposição de nossa grande riqueza produtiva, da memória de nossos muitos sabores e que haja ações coletivas e conscientes de defesa dessa multiplicidade.
A culinária é, desde nossas origens sociais, mais que uma necessidade de sobrevivência, orgânica, primária: o comer e o beber são identidades sociais. Em meio à padronização industrial de sabores, aparências e valores, o patrimônio gastronômico de um povo é um bem a ser preservado, não como peça de museu etnográfico, mas como ação viva de circularidade social.
Preparar aluá é fermentar identidades.
O sabor marcante na minha memória afetiva e na de muitos nordestinos é uma beberagem fermentada, azeda, com toques intensos de erva doce, gengibre, cravo e sabores próprios de cada região. O azedo interage com o doce intenso da rapadura transformada em bebida, e o resultado é um embolado com sabor de nordestinidade.
Câmara Cascudo disse que o aluá acompanhou a ocupação e colonização do Nordeste, assim sendo, ele acompanhou as interações forçadas de muitas culturas que resultaram em nossa agridoce identidade. Sem negar, ou eufemizar as violências de nossa história colonial, podemos pensar na economia e na cultura local, nos saberes populares e familiares como forma de respeitar as dores de nossa formação, sem edulcorar nem amargar nosso patrimônio gustativo.
As contradições do sabor do Aluá estão carregadas com o que a história nos legou. Originalmente brasileira, é uma miscelânea: a base fermentada de milho, abacaxi ou pão é inspirada nas fermentações rituais indígenas. O adoçado da rapadura ou açúcar mascavo traz nossa formação açucareira, os sabores intensos das especiarias do oriente que se misturam na expansão da Europa e na busca renascentista das Índias. Refrigerante, tônico e saudável, o azedo Aluá é uma tradição histórica integrativa e pedagógica.
O Aluá de pão é praticamente exclusivo do Ceará – é o aluá da minha infância, aliás, Dona Fátima, minha mãe, que vocês já conheceram aqui na coluna, sempre dizia que Aluá é de abacaxi, ou de pão, o resto é invenção – é um costume extremamente nosso, e de grande importância local. Sua produção integra cadeias familiares, quase folclórica, populares e democráticas.
A bebida chegou a ser extremamente popular na corte imperial do Rio de Janeiro, mas, nunca foi mercantilizada em larga escala, mesmo na industrialização tardia do Brasil ela ficou de fora. O Aluá bebe dos festejos indígenas, juntos com beberagens como o mocororó e o cauim, e tem forte conexão com o misticismo de nossas gentes, está ligado ao catolicismo popular e seu preparo se conecta com a ritualística do São João.
Em muitas regiões, a bebida só pode ser consumida após as rezas. O Aluá está no candomblé, onde aumenta o axé de quem a ingere e reforça a conexão com os orixás e a espiritualidade ancestral.
Pensar o Aluá é pensar nossas tradições e costumes, como lidamos com nossa arca de saberes e sabores, para onde vamos e de onde viemos enquanto coletividade, que história construímos e que gostos partilhamos e partilharemos.
Voltando à discussão de Astrid e Prioli, não se trata de música, ou de São João – apenas – se trata de diversidade e conhecimento, de experimentação, de se permitir que além da cerveja industrializada que tem suporte para está em cada prateleira e cada mesa de bar dia-a-dia se possa conhecer os azedos, amargos e ácidos que nos alimentaram como humanidade quando açúcar e sal não eram tão onipresentes.
É preciso cuidar de nosso patrimônio não apenas físico, mas permitir que a multiplicidade dos brasis continue a existir e suas muitas teias continuem a se desentrelaçar nem que seja, infelizmente, uma vez a cada ano. Que tal então deixar ao menos esse espaço para a tradição?