A guerra e a pandemia de ódio também nas redes sociais
No ambiente digital uma guerra também se iniciou, uma radicalização que permite a identificação de apenas dois polos, ou você está contra os judeus ou contra palestinos
07 de outubro de 2023: o grupo extremista Hamas realizou um violento ataque surpresa contra o Estado de Israel, mas os alvos foram civis e não eram prioritariamente militares ou políticos. Um festival de música e comunidades coletivas agrícolas israelenses são atacadas. As cenas e relatos são avassaladores.
Em resposta, Israel iniciou uma guerra total ao Hamas, estamos em pleno ataque à faixa de Gaza – principal área geográfica de atuação do Hamas – entretanto, 2 milhões de palestinos estão sendo atacados e não apenas o Hamas. Um bloqueio israelense já faz faltar água, remédios, energia e suprimentos dos mais variados, a situação na região é caótica. O Hamas se preparou para o combate, os civis não.
Nas redes sociais uma guerra também se iniciou, uma radicalização que permite a identificação de apenas dois polos, ou você está contra os judeus ou contra palestinos. Parece impossível explicar que o Estado de Israel não é o povo Judeu, o Hamas não é o povo palestino.
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Na guerra virtual das redes sociais, com especialistas e autoridades se multiplicando, os ataques e agressões crescem de forma tão violenta quanto as do conflito real. Não estou minimizando quem sofre efetivamente no conflito do Oriente Médio, apenas entendo que a violência simbólica pode ser tão lesiva quanto à física e costuma trazer efeitos de maior duração e que se inserem na mentalidade das sociedades de forma extremamente destrutiva.
O ódio trata as ações das partes como as ações do todo, em uma metonímia letal. O ódio é generalizante e generalizador, quando ele se estabelece as pessoas passam a odiar aquilo que o outro representa, não o indivíduo, odeia-se a coletividade na qual o outro está inserido, seja ele quem for. Vejamos alguns casos muito recentes para refletirmos nossa coletividade no ódio e de como o tempo pode torna-lo mais arraigado ao invés de o dissipar.
Ezra Yachin, de 95 anos, foi o reservista mais velho dos 300 mil soldados mobilizados por Israel para atuar em Gaza. O soldado ancião não vai entrar em combate, mas, de acordo com o exército israelense, motivará as tropas com sua experiencia e patriotismo. Nas primeiras exortações o idoso sentenciou “não deixe ninguém para trás. Apague a memória deles” “Apaguem eles, suas famílias, mães e filhos. Esses animais não podem mais viver” e “Todo judeu com uma arma deveria sair e matá-los. Se você tem um vizinho árabe, não espere, vá até a casa dele e atire nele”.
‘Dias depois Joseph Czuba, 71 anos, nos EUA se direcionou a uma inquilina palestino-americana e tentou estrangulá-la e a esfaqueou diversas vezes depois golpeou o filho daquela mulher, de seis anos, até a morte. O menino, que foi esfaqueado 26 vezes com uma faca serrilhada de lâmina de 18 cm, ela cerca de 12 vezes, está hospitalizada em estado grave. O idoso gritava ‘Vocês, muçulmanos, devem morrer!’.
O Hamas atacou de forma bárbara e arbitrária civis indefesos. A resposta dada ao ódio tem sido mais ódio, numa espiral que pode se tornar incontrolável. O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, teve uma fala cirúrgica para o momento que vivemos, ao afirmar que precisamos “evitar transformar o que já é uma tragédia em uma situação calamitosa.”.
Antes que pensemos que essa realidade não nos diz respeito diretamente, pensemos na nossa realidade. No Brasil, em Curitiba, um cliente foi filmado em meio a ataques racistas, xenofóbicos e homofóbicos contra um frentista em uma loja de conveniência no último sábado, 14. O frentista é chamado de "neguinho", “viadinho”, "otário", e "nordestino dos inferno", em meio a sugestões de violência ele grita contra quem "veio do Nordeste para querer ser gente" em Curitiba.
Em Portugal, o ódio aos brasileiros migrantes tem crescido assustadoramente, expressões como 'Brasileiro é lixo' tem se espalhado pelas ruas, recentemente uma criança brasileira negra foi vítima de racismo durante festival de música no país, a menina de 8 anos estava brincando quando foi acusada de roubo por um dos participantes do evento.
Enquanto a menina brincava com outra criança, também negra, um dos participantes acusou a criança de roubar seu cartão de crédito, chegando, inclusive, a arrastá-la pelo braço até um galpão, se a mãe da criança não tivesse agido sabe-se lá o que teria acontecido diante da fúria daquele homem. Exagero? Os números e estudos provam que não, o ódio destilado nas redes tende a se materializar e se intensificar.
Odiar, vigiar, controlar, fiscalizar, ameaçar, atacar o vizinho, ter como provável inimigo aquele que está ao seu lado sempre foram armas utilizadas nas ditaduras e nos governos totalitários, um povo que odeia é mais fácil de controlar e enganar, basta virar todas as indignações contra o alvo do ódio e o governo escapa ileso de todo seus crimes e falhas.
Acompanhar as zonas de comentários das notícias identificadas acima foi uma árdua missão de imersão nas entranhas do ódio pasteurizado, massificado e proliferado. Os discursos, por mais alienados e desconectados com a realidade ganham apoio, se reforçam e se conectam, criando um multiverso do ato de odiar. Logo, política, etnia, raça, credo se misturam num monstro abstrato a ser abatido.
Vivemos uma epidemia de ódio gratuito, não que não existissem os que odiassem por prazer no passado, mas, as redes e a pós-modernidade criaram uma identidade: o “hater”. Pessoas assumem com orgulho esse papel, influencers ficam felizes em ter haters, fazem disso um sinônimo de sucesso. Jornais, profissionais da informação e políticos se acostumam a receberem doses gratuitas de ódio e ameaças, normalizasse o odiar gratuito. Volto a dizer, isso não é novidade na humanidade, mas o que vivemos é uma industrialização do ódio. Isso precisa ser problematizado.
Jovens em Raves, idosos e crianças em Kibutz, milhões de civis de todas as idades em sua ocupação ancestral, crianças correndo, brincando, existindo. Pessoas que são perseguidas por sua fé, por nascerem em um lugar ou de um grupo. Odiar o ser, pelo que é, é um absurdo cada vez mais popular e disseminado.
Voltando a fala já tornada senso comum de Nelson Mandela se é possível e fácil odiar pelo que se é, sem que nada tenha que ser feito para que o ódio e o desprezo se manifeste, por que não podemos ensinar a existir e respeitar a humanidade e o ambiente pelo que se é, humano, animal, vegetal ou qualquer manifestação da existência em si.
Existimos, logo, é preciso odiar para se afirmar? Acredito que não, se existimos, logo, o outro também pode e deve existir