As ideias e iniciativas de crueldades presentes na história do Ceará
Apesar do declínio da eugenia como movimento organizado, suas influências ainda persistem em alguns aspectos da sociedade brasileira
No início de setembro, um prefeito brasileiro defendeu publicamente a castração de meninas do seu município. O político, se dirigindo ao secretário de saúde do município, expressou: “tem que começar a castrar essas meninas. Controlar essa população [...] Tem que ter um projeto federal, estadual e municipal, porque precisa, sim, desse controle”.
Como reação às falas foi imediata, o partido do prefeito o expulsou; o Ministério Público anunciou investigações, mas, nas redes sociais, parte da população apoiou a ideia de o Estado controlar a fertilidade de parte da população à força.
O que talvez o prefeito e seus apoiadores não saibam é que esse projeto, em todos os seus níveis, já aconteceu, foi muito popular e gerou políticas públicas concretas por parte de vários Estados, entre eles o brasileiro.
Úteros e cabeças: ideias de controle dos corpos e gentes do Brasil
Ao acompanhar os debates sobre as falas do prefeito, me lembrei de três eventos ligados à história do Ceará e ao Nordeste: o corte da cabeça do cearense Antônio Conselheiro, o corte das cabeças do bando do cangaceiro Lampião e a ideia de usar contraceptivos na água dos nordestinos para controlar a natalidade da região. Vejamos esses eventos caso a caso.
Embora em contextos diferentes, o corte de cabeças de personagens nordestinos tem uma forte conexão, que vai além da excentricidade macabra de degolas realizadas pelo estado à margem das leis. As decapitações serviram a estudos científicos sobre sua anatomia cerebral. Os estudos deveriam comprovar a índole delinquente dos insurgentes nordestinos, sua predisposição biológica ao fanatismo e à criminalidade.
Antônio Conselheiro, cearense de Quixeramobim, foi o líder da Guerra de Canudos, no sertão da Bahia. O conflito entre os seguidores de Conselheiro e as forças do governo resultou em uma série de batalhas sangrentas até 1897. Antônio Conselheiro morreu durante o conflito, seu corpo foi desenterrado, sua cabeça cortada foi enviada a Salvador para estudos médicos que deveriam comprovar o atraso biológico dos nordestinos.
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Virgulino Ferreira da Silva, apelidado Lampião, foi mais famoso dos cangaceiros. Ele e seu bando atuaram violentamente no banditismo social sertanejo até serem emboscados e mortos pela polícia em 1938. Suas cabeças foram cortadas e exibidas publicamente. As cabeça dos líderes do bando, Lampião e Maria Bonita, foram estudadas. O governo recebeu pedidos alemães para estudar os crânios.
O maior centro de estudos raciais do país, que já estava sob comando nazista, se interessou por nossos cangaceiros mais famosos.
Por fim, há alguns anos, lendo “Na toca dos Leões”, primeiro livro do grande biógrafo Fernando Morais, fui impactado por um trecho polêmico, em que um político, candidato nas eleições de 1989, teria sugerido a adição de contraceptivo à água potável distribuída no nordeste. A ação seria um meio para resolver o problema da superpopulação das camadas mais pobres do Nordeste.
Esses quatro casos - a castração de meninas, a decapitação de “bandidos” para experimentos médicos e controle de natalidade forçado, secreto, feito por parte do Estado – têm uma fonte, uma base, uma pseudociência que foi muito popular no Ocidente e no Brasil nos séculos 19 e 20: a Eugenia.
Eugenia: um mal a ser exorcizado
Essa pseudociência foi criada por Francis Galton – primo de Charles Darwin – e propunha a melhoria da qualidade da população por meio da seleção de características hereditárias desejáveis e da supressão de atributos físicos e psíquicos indesejados. Uma seleção artificial da espécie, uma deturpação da ideia de raça em Darwin.
Essa ideologia ganhou força em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, onde teve um impacto duradouro e controverso na sociedade e na política. Mas foi nos EUA que ela teve seu maior destaque.
No país da América do Norte a Eugenia foi tão forte que cerca de 65 mil pessoas foram esterilizadas à força, muitos estudos científicos foram feitos com cobaias humanas em busca do projeto da raça perfeita. O próprio Hitler falou que se inspirava no projeto americano de eugenia.
O Brasil também teve seus expoentes eugenistas. O médico e escritor Renato Kehl – fundador da Sociedade Eugênica de São Paulo em 1918 - defendeu a esterilização de pessoas consideradas "inferiores", a promoção do casamento entre pessoas de "raças superiores" e a vinda de europeus brancos para o "branqueamento" da população brasileira.
Monteiro Lobato não tinha apenas algumas poucas frases racistas em seus textos infantis, ele era entusiasta da eugenia e defendeu abertamente a ideia de que o Brasil deveria promover a miscigenação apenas entre raças consideradas "superiores", argumentando que isso levaria ao desenvolvimento do país.
O principal professor da Faculdade de medicina da Bahia, fundador da medicina legal no Brasil, Nina Rodrigues, médico que examinou a cabeça de Conselheiro, defendia que a distribuição racial no Brasil era a razão da criminalidade nacional. A “inferioridade da raça negra” estaria no centro de nossos males, Rodrigues chegou a propor um código penal para cada uma das raças brasileiras.
Na década de 1930, os eugenistas ganharam destaque nas discussões da Assembleia Constituinte de 1933, incluíram a ciência em projetos de lei e influenciaram políticas de imigração.
Com propostas absurdas, como menos impostos para os racialmente superiores e uma seleção de pessoas de boa linhagem para cargos públicos e universidades, os eugenistas conseguiram introduzir na Constituição de 1934 a educação eugênica e o controle nas políticas de imigração, dificultando a vinda de estrangeiros que não fossem brancos.
Com a Segunda Guerra Mundial e os horrores do Holocausto, a perversidade das ideias ligadas à eugenia ficou clara. A associação direta entre essa pseudociência e o extermínio genocida de grupos e povos ditos inferiores levou ao declínio da influência aberta desse movimento no ocidente, mas esses pensadores não perderam seu poder de atuação política, nem sua influência nos bastidores.
Apesar do declínio da eugenia como movimento organizado, suas influências ainda persistem em alguns aspectos da sociedade brasileira.
A eugenia brasileira está entranhada no Estado e no senso comum, é uma parte complexa e controversa da História do país e precisa ser melhor entendia para ser combatida. Hoje, o Brasil luta para superar as desigualdades e promover a inclusão de todos os cidadãos, independentemente de sua raça, origem ou condição social, em consonância com os princípios democráticos e os direitos humanos universais. A eugenia é um mal a ser exorcizado do país e não pode ser tolerado em nenhum nível ou circunstância.