Patrulha Moral e o teatro da superioridade ética

Vimemos tempos de hipersensibilidade performática

Escrito por
Maria Camila Moura verso@svm.com.br
Legenda: As repreensões da patrulha, costumeiramente, são ácidas, inflamadas, humilham e seus frutos são lastimáveis
Foto: GoodStudio/ Shutterstock

"Trabalho com idosos e disse, na pós-graduação, que amo meus velhinhos: levei uma bronca da professora na frente da turma inteira, fui chamada de etarista".

"Comentei que as músicas de Pabllo Vittar não me agradam: fui chamado de transfóbico. Na hora, não soube como reagir, parece que preferir bossa-nova agora é crime.".

"Abri uma reunião de trabalho com 'boa tarde a todos e todas'. Todos os presentes eram cisgênero, mas como não falei 'todes':  fui tachado de preconceituoso".

"Comentei que gosto de comer acarajé vegano, fui acusada de apropriação cultural'.

"Confessei não gostar de festas barulhentas: fui acusada de elitista e de desprezar a cultura popular".

"Expressei minha admiração pelas poesias de Vinicius de Morais: fui chamado de misógino".

"Expliquei o funcionamento da Universidade de Oxford no século XIX, disse que o campus incluía a casa do reitor, residência para professores e universitários, mas que essa cultura se perdeu um pouco, que hoje temos muitas 'uniesquinas': por causa deste termo, fui acusada de elitista, de desprezar e humilhar alunos que não frequentaram faculdades renomadas".

"Comentei que me matriculei na academia para perder uns quilinhos e fui chamada de gordofóbica".

"Fiz uma homenagem à padroeira da minha cidade: fui chamada de intolerante religiosa".

"Sou mastologista e falei que mulheres acima de 50 anos devem fazer a mamografia anualmente: fui acusado de ser preconceituoso e de invisibilizar vidas trans, porque deveria ter falado 'mulheres e homens trans que não fizeram cirurgia de mastectomia".

"Comentei que aprecio vinho verde português: fui chamado de colonialista eurocêntrico". 

"Contei no trabalho que ganhei flores de meu marido: uma colega disse que eu estava reforçando estereótipos de gênero, contribuindo para a opressão das mulheres.".

"Comentei sobre a importância da Grécia Antiga na formação cultural ocidental: me chamaram de colonialista que ignora a ancestralidade africana e indígena".

"Comprei um cachorro de raça hipoalergênica para meu filho: fui acusada de ser cúmplice da indústria cruel dos pets e ignorar abrigos de cães para adoção".

"Elogiei a dedicação de um aluno: fui acusado de exaltar uma cultura meritocrática opressora".

"Declarei que meus filhos me fazem feliz:  disseram que eu estava romantizando a maternidade e oprimindo mulheres que sofrem na maternidade".

"Comentei que não havia entendido um filme, que a história era complexa, meio 'doida': fui acusada de ser capacitista, insensível com as pessoas em sofrimento psíquico". 

Esses não são exemplos fictícios. Se nada disso lhe causa espanto, se essas reprimendas lhe parecem justas e naturais, provavelmente, este texto lhe soará ofensivo. No entanto, se você identificou algo de absurdo ou se lembrou de situações semelhantes, talvez você compreenda que estamos vivendo tempos de hipersensibilidade performática: um tempo em que qualquer palavra pode ser reinterpretada como delito e passível de ser punida publicamente com indignação teatral. 

Nos exemplos citados, o que está em jogo não é a defesa das minorias – que, sim, é uma pauta importantíssima e urgente - mas o prazer da caça pelas palavras erradas, de encontrar culpados. É evidente que críticas legítimas existem e devem ser feitas.

O combate ao racismo, à misoginia, à homofobia, à transfobia é inegociável. Mas confundir tais lutas com a patrulha que condena alguém por não usar ‘todes’ em uma reunião com pessoas cisgêneros é desproporcional e contraproducente - fragiliza as próprias causas que diz defender. 

Quando o feminismo é utilizado como pretexto para vigiar e punir uma mulher pelas flores recebidas do marido, perde-se força e apoio para enfrentar o feminicídio. Quando a luta antirracista e o decolonial se tornam pretextos para acusar de colonialista quem aprecia vinho português, banaliza-se a violência racial e estrutural. Quando a suposta defesa da diversidade confunde gosto musical com transfobia, a caricatura substitui a seriedade do debate. 

Veja também

Creio que a patrulha moral ofereça aos seus membros um grande prazer narcísico: o gozo em ostentar uma suposta superioridade ética, em posar de grande humanista. No entanto, como bem observou uma conhecida: 'essas pessoas acham que amam, mas não fazem a menor ideia do que é amar'.  

Esses vigilantes estão sempre prontos para transformar deslizes banais em delitos gravíssimos.

Basta uma palavra mal colocada para a guilhotina moral ser acionada. Há uma profunda ironia quando um discurso que se proclama inclusivo e amoroso, esteja sempre armado para punir quem não ama do 'jeito certo', com palavras politicamente impecáveis.

Curiosamente, calam e oprimem em nome de um suposto amor à humanidade. A patrulha moral transformou a arminha feita com as mãos, que tanto criticam, em dedo em riste, sempre pronto para acusar e condenar. 

As repreensões desta patrulha, costumeiramente, são ácidas, inflamadas, humilham e seus frutos são lastimáveis: produzem medo e silêncio, alimentam polarizações políticas, desacreditam movimentos sociais sérios. Criam uma mordaça elegante: em nome do combate ao preconceito, oprimem. Convertem qualquer convivência em um campo discursivo minado, onde cada palavra pode acionar uma bomba de grande potencial destrutivo. 

Costumeiramente, esses vigilantes invocam, de maneira quase caricata, o paradoxo da intolerância, de Popper, para justificar sua fúria, sem perceber que não há intolerância em frases banais como ‘amo meus velhinhos’, ‘não gosto das músicas de Pabllo Vittar’, ‘hoje existem uniesquinas’ ou ‘gosto de vinho português’. De forma astuta pervertem o raciocínio de Popper em benefício próprio, em uma tentativa de blindar a própria incongruência. Se munem de sofismas convenientes (e patéticos) para tratar qualquer discordância como ‘violência simbólica’.  

Essas censuras cotidianas não protegem minorias, não são gestos de cuidado. São encenações de um espetáculo moral, oportunidades de autopromoção. Não se trata de excesso de zelo, mas falta de bom senso.  

Não é amor à diversidade, não há nada de reparação de injustiças históricas, mas, ao contrário, o que há é uma grande e mesquinha necessidade de sinalizar virtudes.
 

Não se pode falar em compromisso com a dignidade de nenhum grupo quando, cotidianamente, fere-se a dignidade de qualquer um por qualquer deslize. Esse tipo de conduta não conscientiza ninguém, antes, afasta da pauta.

A patrulha da moralidade não cria elos, mas sim os destrói. Não juntam mãos com outros, antes as soltam (e, às vezes, as decepam). A patrulha da moralidade não quer mudar a sociedade e reduzir as desigualdades, antes buscam atingir, narcisicamente, o topo de uma hierarquia virtuosa e moral.  

Aparentemente, a patrulha tem se multiplicado, proliferam-se como ervas daninhas: criam grupos e comunidades inteiras de pessoas intolerantes, mas convencidas de sua própria bondade - um penoso e trágico teatro coletivo de superioridade ética. Militância, no entanto, não é salvo-conduto para humilhar.

Muitas pessoas estão sendo silenciadas por supostos paladinos da liberdade e dignidade humana. Por isso, é preciso estar atento: hoje a opressão também pode vir mascarada de cuidado, revestida de suposta compaixão – e disfarçada de virtude, se torna ainda mais eficiente.

Hoje, muitas vezes, o autoritarismo virá embalado com papel celofane do politicamente correto – bonitinho por fora, corrosivo por dentro. Que não nos deixemos iludir.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.