Ética é para ser usada só em público? PDF vazado de grupo de WhatsApp é retrato de corrosão moral
Um texto sobre o retrato de vínculos que se sustentam não por afeto, admiração ou trocas frutíferas, mas por um pacto implícito de desprezo, superficialidade e corrosão moral
Como muitas outras pessoas de Fortaleza, recebi um arquivo em PDF, ironicamente intitulado ‘amigos queridos’. Ao abri-lo, deparei-me com um documento de 37 páginas, repleto de transcrições e capturas de tela de conversas vazadas de um grupo de WhatsApp composto por um treinador esportivo (também dono de uma assessoria esportiva), dois médicos alunos da assessoria em questão e uma mulher, igualmente aluna da mesma assessoria.
Não conheço os envolvidos, tampouco me interessa suas identidades. Este texto não é sobre pessoas específicas, mas sobre o que se revela, com brutal clareza, nesse episódio – o retrato de vínculos que se sustentam não por afeto, admiração ou trocas frutíferas, mas por um pacto implícito de desprezo, superficialidade e corrosão moral.
A princípio, cheguei a pensar que o conteúdo daquele arquivo fosse falso – algum tipo de montagem, de provocação apócrifa. Só me convenci de que não se tratava de algo fake ao saber que a integrante mulher do grupo havia publicado em sua rede social uma espécie de pronunciamento sobre o caso.
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As mensagens vazadas revelam um universo de comentários maldosos, debochados, gordofóbicos, homofóbicos, transfóbicos, etaristas, classistas, preconceituosos de um modo geral e, sobretudo, de extremo mau gosto.
Em tom ferino, os participantes do grupo comentam sobre: colegas de profissão, pacientes, o corpo de atletas amadores e profissionais, o desempenho esportivo de terceiros, vida amorosa e íntima de outras pessoas. Tudo temperado com sarcasmo, deboche e desprezo pelas mais diversas formas de ser e estar no mundo.
Em 37 páginas não encontramos nenhum diálogo que se possa qualificar como saudável. Nenhuma reflexão, nenhum lampejo de inteligência.
Há apenas corrosão, uma mediocridade exibida sem qualquer pudor por adultos, alguns inclusive tidos como profissionais competentes em suas áreas de atuação, mas que parecem incapazes de sustentar três linhas de conversa sem deslizar para o esgoto do aviltamento.
Peço licença e perdão ao leitor para expor alguns trechos que ilustram o teor das interações (transcreverei os comentários, substituindo apenas o nome das pessoas mencionadas): o treinador/dono da assessoria pergunta a um dos médicos “Se X fosse um traveco, tu tacaria a pomba?”.
Em outro momento, ao comentarem que X estaria viajando pela África, a aluna comenta “X tá assustando leão na África”, ao que o treinador responde: “quero que ela seja estuprada por um elefante então”.
Os comentários, por vezes, são brutais. Abundam zombarias contra a aparência de algumas mulheres; tecem comentários sobre o “cabelo ruim” de um rapaz; pessoas baixinhas viram alvo de zombaria; um rapaz também é vítima de gozação por sua gagueira e porque “fala igual um pedreiro”, como se isso fosse um insulto. O treinador chega a se referir a um aluno como “aquele aluno mongoloide que tem uma rádio”.
Comentários gordofóbicos abundam: um homem é chamado de “gordo seboso”; em outro trecho, o treinador diz a um dos médicos “tu era um gordo seboso. Se não fosse eu na tua vida não estaria comendo a metade desses pirikito”.
Cada integrante do grupo parece ocupar um lugar no teatro da baixeza. A aluna, única mulher do grupo, assume o posto de metralhadora de impropérios. Suas falas exalam ressentimento e agressividade – que longe de denunciar força, parece revelar uma alma sitiada. Suas palavras parecem sintoma de alguém preso no cárcere da própria amargura – ninguém em paz consigo mesmo conseguiria carregar tanto ódio com tamanha leveza.
A postura dos dois médicos é estarrecedora, causam espanto não somente por falar grotescas, mas pelo abismo entre a dignidade que a profissão demanda e a pobreza ética de suas posturas. A medicina, ainda hoje, ocupa um lugar simbólico de confiança e cuidado. Médicos lidam com vidas em momentos de fragilidade, de vulnerabilidade extrema, é preciso certa sensibilidade para exercer o ofício. Já os dois médicos do grupo estavam ali zombando das mais diversas pessoas – de colegas de profissão, de pacientes, alunos.
Tive que reler algumas vezes o trecho no qual a aluna comenta no grupo que um dos médicos teria “OBRIGAÇÃO de ajudar com o pé do Y. Ele não tá conseguindo treinar (...)” e um dos médicos responde “eu ajudo. Injeção letal.” Em outro trecho, um dos médicos comenta que recebeu um print do cirurgião plástico que “operou a barriga” de um conhecido deles duas vezes.
Há ainda relatos jocosos sobre pacientes citados com escárnio, um dos médicos pergunta levianamente: “eu contei da véia que eu atendi que foi 1h30 e mandei devolver o dinheiro?”, enfim, uma sucessão de absurdos que parecem apontar não para uma quebra de conduta isolada, mas para um padrão de interação estruturado na desumanização.
O treinador, por sua vez, parece ocupar o posto de mascote da grosseria. Sua fala orbita em torno de obscenidades, expressões chulas e um erotismo tão primitivo quanto repetitivo - ‘tacar a pomba’ se torna quase um jargão. Sua fixação por órgãos genitais beira o cômico, a necessidade de afirmação de virilidade ressalta que o que parece estar oculto.
No entanto, para além das peculiaridades grotescas de cada um, o que mais impressiona é o silêncio coletivo diante da baixeza. Ninguém ali tenta impor um limite. Ninguém questiona, confronta ou interrompe comentários maldosos. Há apenas risos cúmplices. Este riso é revelador.
Por vezes, rir é uma forma de mascarar a própria mediocridade. Muitas vezes, o riso é o sintoma da covardia. Ri-se porque é mais fácil do que se posicionar. Alguns riem por concordarem com os absurdos proferidos, apesar de faltar a coragem de dizer o que foi dito. Outros até discordam dos impropérios, mas carecem de coragem para se posicionarem.
Rir não exige coragem, apenas uma adesão passiva. Rir, ali, é participar do pacto sem assumir responsabilidade.
Apesar do conteúdo chocante, alguns podem argumentar que ali se trata de um grupo íntimo, privado, entre amigos. Entretanto, a ética não pode ser um mero apetrecho para ser portado apenas em público.
A moral não pode terminar onde começa um grupo de WhatsApp.
E, definitivamente, a privacidade não pode ser álibi para tanta brutalidade. Não estou aqui advogando por uma pureza moral em todo e qualquer espaço, mas quero ajudar na compreensão de que o caráter se revela, sobretudo, quando ninguém está olhando.
Infelizmente, este não é um episódio isolado. Há incontáveis grupos que operam sob a mesma lógica. Grupos onde a crueldade virou laço de pertencimento e a zombaria se travestiu de intimidade. Não podemos naturalizar este tipo de interação que fere a dignidade humana de diversas formas. Precisamos, com urgência, recuperar o senso do intolerável, reaprender a nos escandalizar.
Quando o riso coletivo depende da humilhação alheia, temos o retrato de uma sociedade em colapso ético, em uma profunda falência moral. Quando a coesão de um grupo se constrói à custa da degradação de alguém, não estamos diante de uma amizade, mas de uma miséria afetiva disfarçada de intimidade. Silenciar diante de tudo isto é tão revelador quanto o riso zombeteiro de alguns ‘amigos queridos’.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora