A Mulher do Fim do Mundo: Elza Soares imortaliza a luta por um Brasil mais justo

A artista fazia do seu canto o grito dos segregados e esquecidos. Nunca esqueceu suas raízes e representou o clamor de multidões

Legenda: Sua saída de cena deixa uma legião de fãs enlutados e um Brasil mais pobre, silente diante de uma das maiores vozes
Foto: Divulgação

Os fins de tarde sempre me ecoam melancólicos e o deste dia 20 de janeiro se mostrou ainda mais triste com a notícia do falecimento da inigualável Elza Soares, aos 91 anos. Segundo sua produção, a partida da cantora foi serena e em casa, ao lado de amigos e muito carinho. Sua saída de cena (termo que prefiro usar com os nossos queridos artistas) deixa uma legião de fãs enlutados e um Brasil mais pobre, silente diante de uma das maiores vozes.

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Falar da carreira da sambista, discografia e interpretações seria algo comum. Elza Soares merece mais! Ela é muito mais! Sua representatividade de mulher negra vinda do morro carioca vai contra uma sociedade marginalizadora e repleta de preconceitos. Seu canto foi e sempre será o grito de muitos por notoriedade, atenção e justiça!

Como afirmei, vinda do subúrbio do Rio de Janeiro, Elza Gomes da Conceição lutou desde o dia do nascimento pela existência. Foi mãe de nove filhos, se casou jovem, ainda na pré-adolescência, sofreu violência doméstica e ficou viúva logo depois da maioridade. Para comprar um remédio para o filho doente, ingressou como caloura no programa do Ary Barroso e, mesmo diante tanta discriminação, esses foram seus primeiros passos no mundo musical.

Sua história se multiplica pelas entranhas dessa nação, pelas favelas, barracos, delegacias e vielas. É um caminhar que comunga com a trajetória de muitos brasileiros segregados diante o olhar da elite. A voz rouca e potente da cantora, brigava por isso e se reinventava devido ao amor da vida.

É consternante saber que não teremos mais a presença tão marcante de Elza Soares nos palcos pelo mundo afora. Aliás, já havia recomeçado sua turnê de shows após meses de isolamento devido a pandemia. Ela era incansável! Vivia com uma série de limitações físicas que a idade e o tempo lhe causaram, ainda assim, pedia “Me deixem cantar até o fim” e teve o desejo preservado.

Elza Soares já havia recomeçado sua turnê de shows após meses de isolamento devido a pandemia
Legenda: Elza Soares já havia recomeçado sua turnê de shows após meses de isolamento devido a pandemia
Foto: Natinho Rodrigues

A carioca começou na música por meio dos sambas. A “Lata D’água” que carregava na cabeça, também seria inspiração de canto para as plateias. Logo migrou para um estilo muito sofisticado do gênero, que é o “Samba-canção”, interpretando sucessos do gaúcho Lupicínio Rodrigues com o “Se acaso você chegasse”.

Essa parceria com o compositor durou para a eternidade e foi inclusive tema de um dos seus últimos trabalhos, no qual tive a honra de assistir no Cineteatro São Luiz, em 2018. Peço até licença, caro leitor, para confidenciar que durantes os 100 minutos de repertório, quase todos chorei ao ouvir interpretações de “Esses Moços”, “Nervos de Aço” e “Vingança”. A presença de palco da artista era indescritível e agora, só quem pôde assistir saberá.

Ainda que não possamos desfrutar da cantora de forma física, seu espírito sempre será eterno e atemporal. Infelizmente, “A carne mais barata do mercado é a carne negra” e essa realidade tão dura se tornou um de seus sucessos mudando os rumos da carreira por total.

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Após a morte de filhos e até sequestro de um deles, um exílio militar e todas as dificuldades de uma vida, Elza saiu das passarelas da Marquês de Sapucaí e pisou no asfalto quente de seu povo. Perdão! Dele ela nunca saiu, mas a partir da década de 1990, esse tema se tornou cada vez mais presente em seu cantar.

Em um dos trabalhos mais importantes, o primeiro de inéditas da carreira, a artista se proclamou como a “Mulher do Fim do Mundo”. O álbum que tem tal título, sem qualquer dúvida entra para os anais da história como um dos mais emblemáticos da nossa discografia.

Longe de querer me estender nas palavras, mas é impossível não falar da faixa “Maria de Vila Matilde'' onde ela gritava o número 180 e declarava a importância da denúncia contra a violência doméstica. A letra que repetia a vida sofrida da mãe do autor, Douglas Germano, se fez autobiográfica no canto de Elza Soares que ironicamente falava na música “Mão cheia de dedos, dedos cheios de unha, pra cima de muá? Jamé Mané”.

O tal Mané não era ninguém menos que o Mané Garrincha, ex-jogador de futebol e sua paixão (a artista, por ironia do destino, morreu na mesma data do falecimento do ex-marido, 39 anos depois). O casamento não foi nada tranquilo, envolvido em polêmicas e vindo na fase de decadência do atleta, Elza sofreu todo tipo de violência do astro e até acusações da crítica que afirmava ser ela a derrocada do futebolista no álcool. Uma total mentira!

Felizmente, o tempo veio a consagrar o nome da cantora na imortalidade, afinal, sua obra ultrapassa gerações. Aos 91 anos, ela venceu até a Covid e mais uma vez se mostrou cidadã ao dizer: Vacinem-se! A artista é adorada desde os mais idosos, que a conheceram lá na Era de Ouro do Rádio, até os mais jovens que em seus shows gritavam “rainha”!

Sua representatividade de mulher negra vinda do morro carioca vai contra uma sociedade marginalizadora e repleta de preconceitos.
Legenda: Sua representatividade de mulher negra vinda do morro carioca vai contra uma sociedade marginalizadora e repleta de preconceitos
Foto: Divulgação

Perdemos a presença física de Elza Soares mas seu legado é eterno. Sua imagem ainda se perpetuará na memória de quem deseja igualdade e sabe que ainda moramos no “Planeta Fome”. Hoje agradecemos a vida longa de um dos nomes mais fiéis ao povo plural que nasce nesse país.

Não poderia deixar de homenagear sem qualquer dúvida a nossa mais representativa voz! Somos todos seus filhos, irmãos, amigos…Viemos de uma mesma raça, de um mesmo ventre hermafrodita que é essa nação. Elza faz destacar tudo isso e é por ela que agora também acreditamos: Deus é mulher!