O que a Farofa da Gkay e “coisa de pobre” têm em comum?

Na vida, logo, nas redes sociais, parece urgente questionar o que o outro faz e o que sente tendo como parâmetro o que vemos como melhor

Legenda: A Farofa da Gkay teve audiência de mais de 60 milhões de pessoas
Foto: Divulgação

A expressão “coisa de pobre”, que muitos usamos a torto e a direito como se ricos fôssemos, é aquela caixa para onde mandamos tudo que entendemos como inferior, feio, menos valioso. Roupinha de crochê para botijão de gás: “coisa de pobre”. Comprar viagem para Gramado parcelada em 10x: “coisa de pobre”. Churrasquinho na calçada de casa: “coisa de pobre”. Morar no bairro tal: “coisa de pobre”.

Veja também

É comum que essa expressão venha acompanhada de um desdém - mesmo em tom de brincadeira - até por quem está longe de ser abastado financeiro. Usamos estas palavras para validar o nosso bom gosto, este tão refinado bom gosto. 

A intenção que essa expressão carrega - a de menosprezar - me pareceu se aproximar bastante do que esteve por trás da frase “não sei quem é”, repetida a torto e a direito no Twitter durante os três dias em que a Farofa da Gkay - uma influenciadora, atriz e humorista nascida na Paraíba - dominou os meios de comunicação e as redes sociais. Um evento que teve audiência de mais de 60 milhões de pessoas, ao que parece, todas essas inferiores aos intelectuais da tuitada. 

Veja também

É interessante observar a pressa com que muitos atestaram que não fazem parte do grupo que conhece algumas das figuras mais populares do Brasil. Aqui, veja bem, não proponho juízo de valor sobre o trabalho que estas figuras fazem, o que usam, como ganham dinheiro. Destaco apenas o óbvio: estas personalidades comunicam, vendem, influenciam, entram na vida de milhões de brasileiros, gostemos ou não. São, portanto, parte da cultura.   

Nas redes sociais, entretanto, um assunto que desgostamos ou não entendemos não pode ser simplesmente ignorado. Por lá, é necessário emitir uma opinião, geralmente em tom de autoafirmação, e vestir a capa de “olha como sou especial, mais inteligente, melhor do que vocês, tanto que essa pessoa de que todos falam não merece sequer a minha googlada porque o legal mesmo é vir aqui dizer que eu não faço ideia de quem seja”.

De forma parecida, foi necessário para alguns que lamentaram a morte de Marília Mendonça começar a frase com um “não era fã da cantora, nem gostava de sua música, mas”. Mesmo travestida de boa intenção, a sombra da arrogância não consegue se esconder e é preciso mostrar que se entristecer pela partida é ok, mas daí a “se misturar” ou ser confundida com um fã já é demais. 

O conceito de elite social (coisa de pobre) e elite intelectual (isso não tem valor cultural) guardam semelhanças. É a ideia de superioridade que, em tempos de eleição, celebra “estar do lado” do Chico Buarque e não do forrozeiro - coisa que eu mesma já fiz, apesar de adorar forró.

É a mesma que fez com que um jornalista, numa matéria do Fantástico, questionasse a imensa comoção nacional diante da morte do cantor sertanejo Cristiano Araújo, como quem dizia: a situação é mesmo digna disso tudo?

Na vida, logo, nas redes sociais, parece urgente questionar o que o outro faz e o que sente tendo como parâmetro o que vemos como melhor. Numa visão meio desastrada de valor, jogamos a cultura do outro ou ele mesmo para um patamar abaixo de nós. 

Há pontos perfeitamente questionáveis no evento da Gkay: 1) ainda estamos numa pandemia e há uma variante circulando, 2) ostentar uma festa de aniversário multimilionária num país onde muitos passam fome é incômodo, dentre outros.

Mas o moralismo da superioridade intelectual, o deleite pueril de atestar que não sabemos do que se trata, o sabor com que pronunciamos a frase “não sei quem é” não eleva ninguém ao patamar de símbolo de uma cultura superior. É apenas besta ou mesquinho. Ou os dois.