Hoje faz 1 ano que meu pai morreu. Demorei 12 meses para falar sobre isso, mesmo que com várias pessoas próximas. O luto me deu um poder do qual eu não quis abrir mão: o de escolher quando, como e com quem eu dividiria essa perda.
Criei um cercadinho, catei umas pessoas para o lado de dentro, não deixei ninguém mais passar e, quem tentou, foi educadamente barrado pela benção do meu poder de decidir. Foi ótimo me respeitar assim.
Veja também
Depois desse tempo reparando na morte do meu pai, João, me senti pronta para, mais do que falar que ele morreu, falar que ele viveu. E sobre a vida do meu pai há muito a ser dito, mas escolhi só uma coisa, a que gosto mais, a que fica cada vez mais óbvia no decorrer do tempo: meu pai foi um amigo como nenhum outro.
Para demonstrar isso com um só exemplo, cito a relação que ele e minha mãe tiveram, apesar das quase 4 décadas divorciados, apesar de ambos terem construído novas famílias. Minha mãe, que pegou o buraco da tristeza com as mãos quando meu pai se foi, justificou o que sentia com um “é muito difícil perder um amigo como o João”. Eu confirmo, é muito difícil.
Descobri na terapia, inclusive, que é provável que meu juízo de amizade seja tão implacável porque tive o João como referência. Quando meço qualquer um com essa régua, o que é injusto, eu sei, geral sai prejudicada.
O luto é uma coisa traiçoeira. São dias, semanas, meses, vivendo de forma serena, feliz, até, passeando por tantas boas lembranças, bebendo sem economia da fonte de amor que foi deixada aberta, falando o nome dele com graça, comentando sobre ele com amigos, até que num dia qualquer, a memória me trai, vejo uma notícia no jornal, aquela que certamente comentaria com ele e tenho o impulso de pegar o celular para mandar uma mensagem, até perceber que aquela pessoa não existe mais. Não dá pra ligar, ninguém vai atender. Nunca. Dura meio segundo e é suficiente para você ser engolida de volta. “A fisgada no membro que já perdi”, como bem disse Chico Buarque.
Mas esse texto não é sobre luto, é sobre a vida, voltemos à vida.
Como bom amigo que foi, como homem elegantíssimo que era, João me deu tempo para me preparar. Adoeceu aos poucos, mandou sinais ao longo de anos, ficou dias internado. Durante a internação, naquela oscilação clichê entre a esperança escancarada e o desânimo secreto, eu sentia um medo imenso de viver num mundo sem o meu pai.
Achei que o planeta fosse virar uma coisa medonha, inabitável, irrespirável. E eu repetia nas sessões de terapia: estou com muito medo. Medo de, especialmente nestes tempos, ficar sem uma nascente da qual eu recebia amor.
Dois dias antes de ele partir, a morte virando a esquina - no meio de um rigoroso lockdown em Londres - saí para andar, para chorar sozinha, para ver quantas coisas lá fora mudariam sem a vida do meu pai. As árvores, o céu, o vento, nada mais seria igual. Pois no caminho de volta para casa, fim de tarde de inverno, o sol batia bonito no fim da rua e, ao invés do medo, fui amparada por uma paz completa, inteira.
Uma certeza concreta de que nada seria igual, mas ficaria tudo bem, que a vida tem uma capacidade de regeneração absurda e que a felicidade é coisa que vai, mas volta. Foi a primeira vez que encarei a morte do meu pai como parte da vida dele. E fiquei pronta, pacífica, à espera do fim que não tardou.
Hoje, graças à tecnologia (à qual eu sou genuinamente muito grata), posso ouvir os áudios, as risadas, posso rever os vídeos e revisitar as conversas que eram só minhas e dele, de mais ninguém. Guardo essas conversas comigo, não divido, mas uma delas, só uma, eu gostaria de deixar aqui.
Certa vez, meio pra baixo, meu pai me ligou como fazia costumeiramente e, depois de meia dúzia de assuntos, estava bem de novo. Me mandou um áudio em seguida, que guardo como um tesouro, em que dizia com uma risada gostosa, aberta: “Que coisa boa, minha filha, você me deu um alento tão grande (...), na hora que você fala comigo, viiiixe, parece que abre, assim, uma clareira, e eu acho tão bonito o sol”.
Ouço tanto esse áudio, vezes seguidas, e em algumas até respondo em voz alta, sabe-se lá se estou sendo ouvida: “eu também, pai, eu acho tão bonito o sol”.
Viva o João, viva, viva, meu pai e grande amigo, para quem eu era clareira e cuja vida ilumina a minha.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora