Voltei, voltamos, a sorrir

Legenda: Sorri, aliás, como há muito tempo não conseguia sorrir
Foto: Thiago Gadelha

Quando, no domingo à noite, após anunciado o resultado eleitoral, Lula saiu de sua casa e entrou no carro preto para se dirigir, em comboio, ao hotel próximo à Av. Paulista — onde então pronunciaria o discurso da vitória —, uma lembrança me veio à mente. As imagens exibidas pela tevê, tomadas pela câmara do motolink que acompanhava o automóvel cruzando as ruas noturnas e iluminadas de São Paulo, remeteram-me a uma cena em quase tudo semelhante, ocorrida cerca de quatro anos e meio atrás.

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A diferença é que desta vez, ao contrário da anterior, Lula era o vitorioso. Quatro anos e meio atrás, ele era a vítima de um processo penal viciado, que o condenara à prisão. Por ordens de um juiz parcial, ele fora conduzido, também em um carro preto e de vidros escuros, em comboio, para ser levado à cadeia. Entre uma data e outra, entre uma cena e outra, a história fez-lhe justiça.

Luiz Inácio Lula da Silva é, sim, como ele próprio bem disse no domingo, logo no início do discurso da vitória, o sobrevivente de uma tentativa de assassinato político. “Eu me considero um cidadão que passou por um processo de ressureição. Tentaram me enterrar vivo”. Pois Lula não só escapou com vida, como agora assiste, na condição de vencedor, ao vexame de seu ex-algoz.

Lula será o novo — de novo — presidente da República. Enquanto o tal juiz não passa de um cadáver moral. Sergio Moro, de vontade própria, jogou sua reputação na lata do lixo da história, ao assumir o mesquinho papel que, na verdade, sempre lhe coube: o de ser mero instrumento do despotismo. Após tirar um candidato favorito da eleição, foi prestar vassalagem ao oponente daquele. Humilhado de público, reincidiu na humilhação, dobrou novamente os joelhos, em flagrante atitude servil.

Em contraposição, o discurso de Lula correspondeu ao que se espera de um estadista. Alguém que, mesmo no êxtase da consagração popular para um terceiro mandato presidencial, soube reconhecer que não poderá governar apenas para os eleitores que o elegeram. “A partir de 1º de janeiro de 2023, vou governar para 215 milhões de brasileiros e brasileiras. Não apenas para aqueles que votaram em mim. Não existem dois Brasis. Somos um único país, um único povo, uma grande nação”.

Quando escrevi o terceiro volume da biografia “Getúlio”, afirmei que nenhum outro homem público brasileiro jamais sofrera um processo de linchamento moral e de desconstrução pessoal semelhante ao de Vargas. Permitam-me, agora, fazer o devido reparo. Nenhum outro homem público brasileiro, com exceção de Lula, como os anos mais recentes demonstraram.

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Deixei o Brasil e vim para Portugal em meados de 2018, quando a intoxicação do cenário político nacional já apontava para a ascensão de uma extrema-direita tosca, orgulhosa da própria grosseria e truculência, envaidecida da ignorância e da falta de civilidade que lhe é característica. Ao ver Lula discursar, ao observar o extraordinário arco de apoios que conseguiu organizar em torno de si, reunindo no mesmo palanque pessoas de pensamento e ideologias tão heterogêneas, voltei a acreditar no Brasil.

Há muito a fazer, é claro. Metade dos brasileiros ainda preferiu depositar seu voto em quem desdenhou dos milhares de mortos da pandemia, a quem encheu o país de armas, a quem sempre abominou a cultura, a arte e a ciência, a quem compactua diariamente com o massacre de indígenas e com a destruição das florestas, a quem desrespeita de modo sistemático nordestinos, mulheres, negros e homossexuais, a quem criminaliza os moradores das comunidades populares, a quem usa slogans políticos copiados do nazismo e do fascismo, a quem já proclamou que as minorias têm de se curvar à vontade da maioria.

Sim, infelizmente, como dizia o escritor Amos Oz, quase sempre “o ódio mobiliza mais do que o amor”. Por isso, Lula é o antídoto ideal contra a odiosidade, a pessoa certa para conduzir o Brasil pelos próximos anos. Sua sensibilidade social, sua já comprovada atenção aos vulneráveis, sua capacidade de agregar pessoas, somar esforços, compor alianças, tudo isso será decisivo no processo de reconquista dos valores amorosos e civilizatórios que sujeitos peçonhentos como Jair Bolsonaro e seus asseclas tentaram, a todo custo, demolir.

Por isso, quando no domingo assisti pela televisão a Lula embarcar naquele carro e seguir rumo à Av. Paulista, não contive a emoção. “É hora de baixar as armas, que jamais deveriam ter sido empunhadas. Armas matam. E nós escolhemos a vida”, ele discursou. Com um olho na tela e outro nas minhas filhas, respirei aliviado, chorei um pouco em silêncio — mas, instantes depois, logo voltei a sorrir.

Sorri, aliás, como há muito tempo não conseguia sorrir. E vi que elas, minhas filhas, também sorriam

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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