Um brasileiro dirigindo em Portugal

Depois de cerca de quatro anos sem dirigir, voltei ao volante. Porque minha habilitação estava vencida, fiquei impedido de pegar na direção por todo esse tempo. Mas aproveitei uma rápida ida ao Brasil, a trabalho, e numa brecha da agenda finalmente consegui renovar a carteira de motorista. Pela nova lei portuguesa, aprovada este ano, a CNH brasileira vale, por aqui, tanto quanto aí, e agora sem limites de prazo, como não acontecia antes.

Nunca fui, confesso, um ás do volante. Estou tendo que reaprender a fazer baliza e a dar partida na ladeira sem estancar o motor. Perdoem-me, por favor. Comecei a dirigir tarde, perto dos 40 anos. Até então, parecia-me impossível, como um ser humano normal, dotado de apenas duas mãos e dois pés, controlar três pedais, um volante e uma alavanca de câmbio, tudo em simultâneo.

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A falta de coordenação motora, a mesma que sempre me impediu de aprender a nadar (apesar dos três cursos de natação frequentados na juventude), foi responsável por minha estreia tardia no universo sobre rodas. Vem daí também, confesso, minha profunda incompetência para jogar futebol e, suprema iniquidade para um cearense, dançar forró.

Dia desses, soube que o escritor norueguês Karl Ove Knausgarden já padeceu de idêntica incapacidade automobilística. “Por muito tempo imaginei que eu não era o tipo de sujeito que dirigia carros, que eu não conseguiria, que o meu forte eram frases e abstrações, imagens e pensamentos, enquanto tudo que envolvia mãos e pés, pedais e alavancas estava fora do meu alcance”, ele escreveu, em um dos capítulos do belíssimo “Outono”.

Assim como Knausgarden, por ter demorado a dirigir, também custei a comprar um carro. No caso, um Renault 19, bordô e de segunda mão, que acabou por sofrer um triste fim em Fortaleza, submerso que foi em uma enchente na Praia de Iracema, após um dilúvio histórico na cidade. Isso depois de ter sido abalroado por um imenso caminhão da cervejaria Antarctica em plena avenida Aguanambi.

Knausgarden, como sabemos, é capaz de ver poesia em objetos e situações mais comezinhos. “Quando as enormes massas de nuvens pairam imóveis no horizonte do céu

azul, ou quando a chuva bate contra o para-brisa, criando padrões irregulares que no instante seguinte são apagados pelo limpador, sou capaz de sentir uma profunda felicidade”, ele descreve, com seu estilo de matar qualquer outro escritor de inveja.

Pois, para mim, traumatizado pela calamitosa combinação de carro e toró, dirigir na chuva só me faz sentir um pânico descomunal. E, para meu desespero, chove-se muito no Porto, particularmente nesses meses finais do ano.

Em compensação, guiar um automóvel em Portugal — uma viatura, como se diz aqui — reserva boas surpresas para um brasileiro. As autoestradas são tão largas e bem pavimentadas que, quando menos se percebe, até mesmo o velocímetro de qualquer carrinho 1.0 — assim, igual ao meu — está marcando inacreditáveis 120 km/h.

O problema é me familiarizar com o jeito português de dirigir nos centros urbanos. Não adianta, por exemplo, ligar a seta para indicar que vai mudar de faixa. Ninguém cede a vez, nem se permite a passagem. Pelo contrário: o condutor que vem a seguir pisa fundo no acelerador e capricha na buzina. Nada de gentilezas, oh, pá!

Buzinar, aliás, parece ser uma paixão local. Nisso, os irmãos portuenses não diferem muito dos fortalezenses. No semáforo, um milésimo de segundo após se apagar o vermelho e se acender o verde, já se ouvem lá atrás as trombetas de Jericó.

A confirmar a regra universal, por aqui também se discute muito no trânsito. Revida-se a menor barbeiragem por meio de epítetos pouco edificantes à mãe alheia. Minha finada mãezinha tem ouvido poucas e boas por esses dias.

Mas a maior maravilha daqui é, sem dúvida, a faixa de pedestres — a passadeira de peões, como se diz por cá em Portugal. Ela é sagrada. Onde não há semáforo, basta colocar o pé ali para os carros pararem, respeitosos, como se fosse mágica.

Sim, gostei de ter renovado minha carteira de motorista. Mas bom mesmo é andar a pé na cidade, usar a prerrogativa das faixas brancas paralelas, pintadas no asfalto. Isso é, desde que outro motorista brasileiro, desacostumado desse pormenor civilizatório, não avance por cima de você lá na próxima esquina.

 

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.