Nos últimos meses, ela vinha demonstrando dificuldades para se colocar de pé com a mesma agilidade de antes. Passava a maior parte do tempo deitada, sonolenta, estendida no piso de madeira da sala. De vez em quando, ao andar, manquitolava. Arfava profundamente, cansava-se fácil. Nas caminhadas diárias pela rua, acontecia de se esparramar na calçada — e só levantar a muito custo.
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Aos onze anos de idade, Bela, nossa cadela de estimação, cresceu junto com minhas filhas mais novas. No primeiro dia em casa, com poucos meses depois de nascida, era apenas uma bolinha peluda, gorducha e sapeca. Logo se tornou um cão enorme, mas sempre dócil, afetuoso. Nunca ladrou com ninguém. Ao contrário, tentava fazer amizade ao primeiro contato, seja lá com quem fosse.
Adestrada quando filhote, sabia se comportar, atendia aos comandos e reconhecia o sentido de várias palavras. Tinha uma inteligência acima do comum para um animal de sua espécie. Bastava eu anunciar que estava indo ao supermercado, por exemplo, para ela logo fazer menção de ir junto.
Convivia em harmonia com nossos dois gatos, Tom e Astro. Os três brincavam e comiam unidos, por vezes na mesma tigela, quando os dois bichanos, abusados como sabem ser os felinos, tomavam-lhe à frente e lhe roubavam bocados da ração canina. Ela esperava, paciente, que eles se desinteressassem daquela comida de cachorro e fossem em busca dos próprios petiscos, deixando-a em paz. Jamais lhes rosnou em sinal de ameaça. Nunca se prevaleceu do seu tamanho para lhes impor respeito.
Alice, hoje aos 13 anos, não recorda de como era a vida, aqui em casa, antes da chegada da Bela. Tudo começou quando Emília, agora aos 18, era apenas uma menininha e, no aniversário de 7 anos, nos pediu um cãozinho de presente.
Nunca fui de gostar de cachorros, mas não resisti quando, depois de alguma insistência familiar, deparei-me no canil com aquela fofura de quatro patas, o olhar meigo e vivaz. Apaixonei-me em dois segundos. Revi meus conceitos.
Quando Emília e Alice se desentendiam, como é comum entre irmãs, ou quando ralhávamos com elas por algum motivo, como é típico aos pais, Bela fazia cara de triste, choramingava, ficava amuada em um canto. Quando estávamos felizes, sempre fazia festa conosco, abanava o rabo, dava pulinhos de alegria. Se houvesse alguém doente em casa, não desgrudava do lado, oferecendo conforto e companhia.
Nos finais de semana, quando mergulhávamos no sofá para assistir a algum filme em família, ela se deitava próximo aos nossos pés, olhando para a tela, como se estivesse entendendo tudo o que via. À hora do almoço, esgueirava-se por baixo das cadeiras, quase sempre próximo ao lugar de Alice, na esperança de abiscoitar alguma comida que por acaso caísse da mesa. À noite, sempre escolhia alguém para dormir por perto, ao pé da cama, variando de quarto em quarto, para que ninguém ficasse enciumado com suas possíveis preferências e eventuais escolhas.
Gostava de carinho e de ficar de barriga para cima, à espera de afagos. Quando olhávamos bem fundo nos seus olhos, ela fitava-nos de volta, como se estivesse nos querendo dizer algo. Estabelecia assim uma comunicação silenciosa com os humanos da casa, sempre com o olhar cheio de afeto, atenção e cuidado.
Foi difícil acompanhar seu drama nos dias finais. Deixara de comer, andava apática, com uns grande nódulos espalhados pelo corpo. Tivera um primeiro câncer ainda novinha, aos seis meses de idade, quando fez a primeira das tantas cirurgias que enfrentou ao longo de sua curta existência. Era uma sobrevivente, exemplo de resistência e de apego à vida.
Na semana passada, quando ela parecia mais do que nunca inerte e sem ânimo, tivemos que levá-la mais uma vez ao hospital veterinário. Os exames radiológicos e de ultrassom revelaram a triste notícia. O câncer, mais uma vez de volta, agora já lhe atingira os pulmões, o fígado e boa parte da cavidade abdominal. Tumores se espalhavam pelo organismo em velocidade avassaladora.
Bela estava sentindo dores horríveis, comunicou-nos o médico. Prognosticou-lhe poucos dias de sobrevida. Deu-nos a alternativa de levá-la de volta para casa, mas advertiu-nos: o que estava por vir seria cruel para nós — e muito pior para ela. Teria que ficar sedada boa parte do tempo. Sem conseguir se alimentar, definharia pouco a pouco.
Acabamos adotando uma segunda e dolorosa opção. Minha mulher e minhas filhas não quiseram testemunhar o instante final. Abraçaram-se a ela lá fora e, durante cerca de uma hora, despediram-se da velha amiga. Quando levei Bela de volta para o interior do consultório, uma parte de sua pelagem estava molhada pelas lágrimas de Adriana, Emília e Alice.
Bela pôs a cabeça em meu colo no instante em que o veterinário raspou o pelo de sua pata dianteira esquerda e procurou-lhe uma veia. Não demorou muito, a vida logo se esvaiu de seu corpo cansado. Ela soltou um último suspiro. Dessa vez, sem arfar fundo, conforme já se tornara comum. Era uma respiração leve, como se Bela estivesse sentindo, enfim, um grande e prazeroso alívio. Olhou-me então pela derradeira vez, antes de cerrar as pálpebras para sempre. Era, sim, o olhar de um anjo.
*Este texto expressa, exclusivamente, a opinião do autor