Quando avistei o vizinho pela primeira vez, levando o golden retriever para passear, já percebi que era brasileiro – a raça do cão, modinha no Brasil, não é muito comum por aqui, em Portugal. Ele passou por mim, deu-me bom dia e, pelo sotaque, confirmei. Brasileiro, sim. E, com aquele acento, carioca. Carioquíssimo.
“Temos um vizinho brasileiro aqui no prédio”, comentei com minha mulher. “Tem um golden”. Ato contínuo, emendei: “Brasileiro, no Porto, com um golden retriever na coleira, só pode ser bolsonarista...”
Explico: na últimas eleições, Jair Bolsonaro teve cerca de 65% dos votos de brasileiros radicados na cidade. E golden retriever, convenhamos, é o típico cachorro de família de classe média. Portanto, a hipótese me pareceu mais do que plausível: homem branco, brasileiro, classe média, dono de golden, morando aqui, não podia ser outra coisa: bolsominion, com certeza.
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Um dia, quando o viu, minha filha, Emília, discordou: “Não tem cara de bolsonarista, não tem jeito de quem faz arminha com a mão”. Além do mais, ela me alertou, nós mesmos também temos uma golden retriever aqui em casa, a Bela. Pois é. O argumento da filhota era pertinente.
Mas, por via das dúvidas, mesmo assim continuei a me resumir aos bons dias, boas tardes e boas noites protocolares, sempre que nos cruzávamos à entrada ou saída do prédio. O vizinho, pelo visto, também não demonstrava interesse em maiores aproximações. “Vai ver, ele acha que você é que é bolsonarista”, arriscou Emília, rindo.
Em um final de tarde, passeando com Bela pela praça ao lado de casa, nossa cadela avistou o cão do vizinho ao longe e, toda serelepe, correu em direção a ele, o rabo abanando. Ficamos ali, eu e o vizinho, frente a frente, embaraçados com aquele encontro compulsório, enquanto Bela brincava com Zecão, o novo amigo peludo.
Não houve outro jeito senão puxar assunto. Depois de fazermos observações bobas sobre o clima – está calor, será que chove, será que esfria nos próximos dias? – ele me perguntou sobre quanto tempo eu estava em Portugal. Chegara a hora da verdade. Olhei para ele, sério, e respondi: “Desde setembro de 2018. Vim embora pouco antes da tragédia”.
Meu vizinho desfez o cenho fechado, soltou um suspiro e me disse, com ar de alívio. “Eu também!”. Contou-me então que era músico, e a mulher, cantora. Evitara-me até ali porque, imaginava, eu era bolsominion. “Sabe como é, né? Brasileiro, aqui no Porto, dono de golden retriever...”
Rimos juntos. Depois disso, eu e Carlos Fuchs nos tornamos grandes amigos. Bela e Zecão, idem. Carlos me presenteou com seus discos maravilhosos, “Caderno roubado”, “Os ventos” e “Fossa nova”. Um ou dois dias depois, sempre passeando com Bela, conheci a mulher de Carlos, Valéria Lobão, cantora extraordinária, que me ofereceu também seus discos, “Noel, preto e branco” e “Chamada”. Em retribuição, eu e Adriana ofertamos ao casal exemplares de nossos livros.
Passamos a nos frequentar, promover jantares e bebericagens nas respectivas casas. No ano passado, Carlos e Valéria abriram o Dona Mira, sem dúvidas o melhor e mais acolhedor bar e café do Porto, no Bonfim. O cardápio é excelente e a seleção musical, claro, irretocável: música brasileira de altíssima qualidade.
Logo à entrada, uma placa em homenagem a Marielle Franco já avisa à clientela: ali, ninguém faz arminha com a mão. Em vez de fuzis, arte. Em vez de ódio, afeto. Em vez de fake news, poesia.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.