Nos preparativos para o retorno definitivo ao Brasil, deparo-me aqui em Portugal com o mesmo e velho problema, enfrentado a cada mudança de endereço: o que fazer para transportar a cordilheira de livros de um lugar para outro?
Se isso já foi, por diversas vezes, um estrupício numa simples alteração de endereço entre bairros da mesma cidade, o que dizer de uma transferência entre dois continentes, separados por um oceano no meio? É trabalhoso — e muito caro. As transportadoras cobram uma fortuna pelo metro cúbico despachado por avião ou navio.
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Assim, não há outro jeito. Decidi fazer uma seleção rigorosa do que devo levar na volta ao país. Desci os livros da estante e comecei a separá-los em três grandes conjuntos. Na verdade, três montanhas espalhadas agora pela casa, em incontáveis sacos, sacolas e sacolões de supermercado.
No primeiro grupo, estão aqueles que irão ser doados a amigos e bibliotecas públicas. São obras ainda em catálogo, fáceis de encontrar em livrarias. Seria mais caro transportá-los do que recomprar parte deles, esporadicamente. Recém-convertido ao e-reader, adotei também como critério a existência de eventuais edições eletrônicas.
Está disponível em e-book? Desfaço-me da edição em papel, passando-a adiante, sem maiores traumas ou dramas. Se um dia quiser reler alguns daqueles títulos, recorrerei ao Kindle. Sim, eu sei que o livro eletrônico não tem o mesmo charme e apelo emocional do papel.
Mas já superei minhas reservas em relação ao aparelhinho, onde hoje guardo e levo comigo, para onde quer que vá, centenas de obras. Conservarei comigo edições especiais, de acabamento gráfico impecável, livros-objeto ou, ainda, aqueles dedicados e autografadas pelos próprios autores.
No segundo monte de livros estão os impossíveis de deixar para trás. Obras de referência, edições antigas, esgotadas e raras, a maior parte diretamente relacionada ao meu trabalho de biógrafo e pesquisador da história.
Por mais extorsivo que seja o preço de um pequeno container de transporte internacional, não há como abdicar delas. A cada novo livro que escrevo, tenho que montar quase uma nova biblioteca temática, vasculhando sebos físicos e online em busca de tais preciosidades. Retornarão comigo.
No terceiro monte, o maior de todos, empilhei aqueles títulos que fiquei na dúvida entre levá-los ou deixá-los — a cada caso, com maior ou menor dor no coração. Não são raridades, mas também não se tratam de lançamentos fáceis de recomprar. Foram sendo acumulados ao longo das décadas, por um ou outro motivo, por vezes adquiridos por impulso, noutras por necessidade de algum trabalho ou tema específico.
Liguei para amigos, fiz contatos com entidades sociais e bibliotecas públicas para deixar o recado: venham buscá-los. Mas venham rápido, antes que eu me arrependa. Choveram interessados. Estão todos prometidos, portanto. De vez em quando, dou uma espiada nas pilhas e, sem resistir à tentação, salvo alguns deles da doação iminente. Mas, juro, estou me aprimorando na arte minimalista do desapego.
Qual o sentido de acumular milhares de títulos que jamais serão relidos por mim? É bem melhor, creio, passá-los adiante, para que cumpram o papel sagrado de transmissores de informação e cultura, nas mãos de novos leitores.
Não é a primeira vez que me desfaço de porções de minha biblioteca particular. Tempos atrás, quando mudei de Fortaleza para Salvador, fiz um primeiro e ainda tímido ato de desprendimento. Na posterior transferência de Salvador para São Paulo, idem.
A cada alteração de endereço nos dez anos que já vivi na capital paulista — foram quatro mudanças entre imóveis alugados, até conseguir financiar um apartamento em prestações a perder de vista —, repeti o ritual de renúncia. Quando vim para Portugal, mais ainda. Reduzi pela metade os livros que então se espalhavam por todos os cômodos da casa, com exceção do banheiro.
Mas nenhuma das ocasiões anteriores foi tão radical quanto a de agora. Levarei na volta à capital paulista menos de 30% do que trouxe para o Porto. E isso, em relação ao que já acumulei ao longo da vida, deve representar apenas 10% de tudo o que um dia já abarrotei em estantes e prateleiras.
Acho lindo quem tem uma grande biblioteca particular. Mas, por vezes, isso é apenas um sintoma de acumulação compulsiva. Livros foram feitos para serem lidos. Parados e fechados na estante de casa, servem apenas para acumular poeira.
Sim, eu sei. Devo queimar a língua. Em breve, muito provavelmente, meu apartamento em São Paulo estará novamente atulhado de livros em um número superior àquele que serei capaz de ler pelo resto da vida.
Quando eu então me der conta disso, será o momento de nova terapia de desapego. Os amigos serão avisados — e as bibliotecas públicas devidamente acionadas.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor