Escrever é meu trabalho. Não tenho outra ocupação, emprego ou atividade paralela. Não sou profissional liberal, professor universitário ou funcionário público. Vivo do que escrevo. Melhor dizendo: sobrevivo.
Não é fácil. A margem de imprevisibilidade da profissão é enorme. Nunca se sabe se o livro no qual se está trabalhando irá vender bem, ou, ao contrário, se será um estrepitoso fracasso de público. Já aconteceu-me uma e outra coisa.
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De todo modo, ganha-se pouco, pouquíssimo, caso não se escreva autoajuda. A vantagem é não precisar bater cartão, assinar ponto, conviver com gente tóxica, aturar colegas e chefes de quem não se goste. A desvantagem é que quase ninguém considera tal ofício um trabalho e, portanto, uma ocupação que precisa ser remunerada.
Trabalho uma média de oito a dez horas por dia. Nessa jornada diária, tento encaixar todas as obrigações inerentes à faina de um escritor de não ficção. Os afazeres são múltiplos. Realizar pesquisas em arquivos, ler vasta bibliografia, redigir os capítulos do novo livro, planejar a estrutura de uma futura obra e, para complementar a renda, escrever artigos e colunas de jornal iguais a esta.
Como não tenho carteira assinada, salário fixo e nem recebo honorários por hora trabalhada, preciso organizar a agenda de modo a evitar qualquer desperdício de tempo. Cada minuto da manhã, da tarde ou da noite é precioso.
Mesmo antes de dormir, não desligo. Reservo o momento para leituras mais amenas, embora também correlatas ao tema sobre o qual então estou debruçado. Levo para a cama, em especial, crônicas, contos e romances de época.
Com tudo isso, sobra-me pouco tempo livre. É necessário que seja assim, do contrário não se consegue pagar os boletos que brotam, inevitáveis e impiedosos, na caixa do correio.
Há meses em que, felizmente, aparece mais trabalho: um pedido de palestra, um curso de escrita criativa, uma encomenda para escrever uma reportagem, um perfil jornalístico, a introdução de uma obra, uma orelha, um prefácio, um posfácio, uma quarta-capa.
Eventualmente, também atuo como ghostwriter, escrevo livros institucionais, aceito encomendas de toda ordem. Tudo isso é muito bem-vindo. Estou sempre às ordens.
Mesmo assim, há períodos de baixa e de vacas magérrimas, nos quais a conta bancária entra em estado sazonal de emergência.
Sou um operário da escrita. Escrevo porque não sei fazer outra coisa de mais útil e rentável. Não o faço por diletantismo, capricho, vaidade ou sacerdócio. Portanto, desculpem, preciso cobrar pela tarefa. Sofro da mesmíssima maldição bíblica que se abate sobre todos nós: “Ganharás o pão com o suor do teu rosto”.
Nunca me ocorreu chegar na vendinha da esquina e pedir para levar um quilo de feijão em nome da amizade com o dono do lugar. Também jamais cogitei chamar em casa um eletricista, um encanador, um pedreiro, um pintor de paredes e, em vez de lhes solicitar um orçamento, sugerir-lhes que executem o serviço, seja ele qual for, em troca de um sorriso e um abraço.
Se marco uma consulta com um médico ou um dentista, se ligo para um advogado ou, sei lá, um psicoterapeuta, se reservo horário com qualquer outro profissional, sei que ele abrirá uma vaga na agenda para me receber. E, óbvio, terá que ser remunerado por isso.
Por que diabos então somente um escritor teria que trabalhar de graça, dedicar horas, dias a fio, para ler os originais de um livro, preparar aulas e palestras, escrever pareceres, paratextos de encomenda, sem ganhar nada por isso?
É comum, também, que jornais e revistas peçam artigos sobre esse ou aquele assunto do momento, essa ou aquela efeméride. Quando pergunto qual o valor que pagam por página, por vezes desconversam. “O pagamento é a visibilidade de ter o texto publicado por nós”, alguns se atrevem a dizer.
No caso de convites para festivais literários, muitos produtores de eventos acenam com a oferta de passagem e hospedagem aos autores, mas necas de cachê. “O pagamento é a viagem em si, além da divulgação de seu trabalho”, alegam.
Ou seja: o escritor, que não viaja a turismo, bloqueia a agenda por uns dias, sai de casa, enfrenta horas de voo ou de estrada, tudo a troco da esperança de autografar meia dúzia de exemplares. Como recebe da editora apenas 10% do preço de capa de cada livro vendido, acaba pagando para trabalhar.
Quando alguém trabalha de graça, não está apenas deixando de ganhar dinheiro. Está perdendo-o, pois poderia investir tal tempo em alguma outra atividade que lhe valesse pelo menos alguns trocados a mais.
“O conselheiro come”, dizia a mulher de Ruy Barbosa, aos que demandavam qualquer trabalho de natureza intelectual ao marido. Pois é. O escritor também come. O que me assusta é existir gente que ainda não saiba disso.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor