O cronista e compositor Antonio Maria dizia que o homem só tem duas missões importantes na vida: amar e escrever à máquina. Hoje, que ninguém mais escreve à máquina, a frase teria que ser traduzida para as novas gerações. Certa vez, minha filha Emilia, à época ainda pequetitinha, tentou esclarecer para uma amiguinha o que era aquele trambolho que eu guardava perto de minha mesa de trabalho, a título de nostálgico objeto de decoração.
“Isso se chama máquina de escrever. É uma espécie de computador antigo. É mais barulhento que os modernos, mas tem três vantagens”, ela explicou, como sempre, toda metida a sabe-tudo. “Não precisa ligar na tomada, não descarrega a bateria e, o melhor, a impressora já vem acoplada: você põe o papel, digita e o texto já sai impresso na hora”.
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Achei graça da explicação emiliana. Quando vim morar em Portugal, entre as tralhas que deixei para trás no Brasil ficou a bela Remington negra, que eu havia comprado no Mercado Livre. Muitos anos antes, me desfizera da Olivetti Lettera 32, cinza e portátil, que comprei tão logo comecei a trabalhar em jornal.
A compra, àquele tempo, tinha sido imperativa. Eu precisava treinar bastante em casa, à noite, para não passar mais vexame no emprego nas manhãs seguintes. Confesso: até pisar numa redação pela primeira vez, eu não sabia escrever à máquina.
Lembro da cara de espanto de minha editora Selma Oliveira quando, ao sentar-me para escrever minha primeira matéria, fiquei desesperado, procurando as letras no teclado da imensa Olivetti que colocaram à minha frente.
Demorei uma eternidade para entregar à editora o texto de uma notinha de não mais de vinte linhas. Agora, três décadas depois, até melhorei um tiquinho. Mas não muito, tenho que admitir. Continuo “catando milho”, como então se dizia.
Ainda escrevo olhando para o teclado — na verdade, um olho nele, outro na tela, habilidade que, imagino, me deixa meio vesgo sempre que trabalho no computador, como neste exato momento, no qual redijo esta crônica.
Morro de inveja da Adriana, que trabalha sempre aqui do meu lado. Ela está escrevendo um novo livro e, quando isso acontece, me humilha com sua capacidade de digitar à velocidade da luz. E, fenômeno dos fenômenos, em vez de apenas dois dedos como eu, ela utiliza todos os dez — e, para minha humilhação suprema, sem precisar olhar para as teclas.
Ele me explica que, na adolescência, frequentou um curso de datilografia. Para os leitores mais novos, que talvez não estejam familiarizados com o termo, elucido: nos tais cursos de datilografia, lá no distante Século XX, aprendia-se a datilografar, ou seja, a “digitar” naquelas máquinas antigas que, como um dia tão bem definiu Emília, vinham com a impressora acoplada.
Nas aulas, o aluno tinha que repetir milhares de vezes as mesmas sequências de letras — asdfg, asdfg, asdfg, asdfg, asdfg, asdfg..., por exemplo, ou zxcvb, zxcvb, zxcvb, zxcvb, zxcvb, zxcvb... — até decorar o lugar em que cada uma delas está localizada no layout do teclado universal, o QWERTY (que recebeu este nome exatamente pela posição destes caracteres na primeira linha das teclas de máquinas de escrever, ontem, e de computadores, hoje).
Ao contrário do que já cheguei a cogitar, não foi por sadismo que o inventor do QWERTY, o norte-americano Christopher Scholes, embaralhou as letras no teclado, em vez de colocá-las bonitinhas em ordem alfabética. A disposição das teclas decorre da organização baseada na aproximação dos pares de letras mais usadas na língua inglesa. Desse modo, mesmo quem não escreve originalmente em inglês tem de se submeter ao formato.
Dito isto, caros leitores, a máxima de Antônio Maria continua valendo. Para mim, as duas missões mais importantes da vida são mesmo amar e escrever. “Escrever com dois dedos e amar com a vida inteira”, detalhava o velho e bom Maria.
*Este texto expressa, exclusivamente, a opinião do autor