Eu devia ter uns doze anos, penso, quando ouvi Caetano Veloso pela primeira vez. Nos alto-falantes do auditório do colégio Janusa Corrêa, em Caucaia, no intervalo de uma festa qualquer organizada por nossa professora Carmen, de Educação Artística – Dia do Estudante? Dia do Professor? –, o refrão de “Alegria, alegria” entrou-me pelos ouvidos: “Eu vou, por que não? Por que nãããããão?”.
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A canção não era nova. Tinha sido lançada uns sete anos antes, mas eu nunca a ouvira, nem mesmo no rádio. Meu pai e minha mãe costumavam escutar músicas bem mais antigas: boleros, valsas e sambas-canções de Francisco Alves, Nelson Gonçalves e Orlando Silva, no programa “E os anos carregaram”, de Wilson Machado, que ia ao ar à hora do almoço, na Ceará Rádio Clube, a PRE-9.
Não saberia reconstituir ou descrever a exata sensação que me invadiu naquele instante, no auditório escolar. Estranhamento, sem dúvida. Curiosidade, em grande medida. Na algazarra da festa, não consegui ouvir direito a letra – e, se a tivesse ouvido, certamente não a teria entendido, com seu estilo fragmentário e pleno de referências que escapavam aos limites de meu repertório infantil.
Mas lembro de ter distinguido, de modo nítido, as frases “eu tomo uma Coca-Cola/ Ela pensa em casamento/ E eu nunca mais fui à escola”. Achei engraçado, mesmo sem atinar talvez para o sentido exato do trecho. De todo modo, tais versos, mais o refrão e os acordes de guitarra do início, ficaram ecoando em algum lugar dentro de mim.
Lembro também, mais ou menos por essa mesma época, de meu pai ter achado horrível a versão de Caetano para “Asa branca”. “Matou a música de Luiz Gonzaga”, sentenciou. “Esses jovens cabeludos não sabem cantar, não sabem compor, e ainda estragam a arte dos outros”, ralhou meu velho.
Pouco mais tarde, já no início do Ensino Médio, na Escola Técnica Federal do Ceará, um professor de português explicava-nos: entre as diversas formas de derivação em nosso idioma, havia a regressiva. Aquela que ocorre quando se retira uma parte da palavra primitiva para dar origem a uma nova. Um colega de classe quis saber então se o termo “transa” seria exemplo disso, derivação regressiva de “transação”.
“Esta palavra, ‘transa’, não existe”, rebateu o professor, furioso. “ É invenção de um maconheiro chamado Caetano Veloso”. O veredicto negativo de meu pai e a afirmação irada de meu professor, separadas no tempo por um punhado de anos, pareciam-me feitas da mesma e má substância: a intransigência diante do novo.
Mas eu já tinha quinze anos – e uma vontade natural de descobrir e ver o mundo por conta própria. Presumo ter sido Sonia, vizinha apenas um pouco mais velha do que eu, irmã de Sérgio, meu melhor amigo de adolescência, que me fez escutar com atenção o LP “Qualquer coisa”. Ou terá sido o “Joia”? Ou, ainda, o “Bicho”?
Não sei ao certo. Só sei que jamais esqueci do clipe gravado por Caetano para o Fantástico, em 1978, no qual ele aparecia cantando, sorridente, os versos da canção, tão simples quanto bela, intitulada “Olha o menino”: “Eu sou um homem sincero/ Que quero morrer, nascer e viver livre”.
Namorei ouvindo “Tigresa”, diverti-me com amigos escutando “Odara”, cantei “Canto do povo de um lugar” como quem entoa uma prece. Quando entrei na faculdade, em 1982, Caetano havia acabado de lançar um disco admirável, “Cores, nomes”, logo depois de outros três álbuns magníficos, “Muito”, “Cinema transcendental” e “Outras palavras”.
Do “Muito”, de 1978, guardo a lembrança do sentimento de ternura que me envolveu ao avistar, na prateleira da Tok Discos, na Praça do Ferreira, a foto azulada de Caetano deitado ao colo de Dona Canô. Com “Cinema transcendental”, de 1979, a atmosfera solar me dava vontade de ir à praia – logo eu, branquelo que nunca pôde pegar sol em excesso, sob o risco de, em caso contrário, virar um pimentão.
Quando eu e meu irmão montamos um trailer para vender sanduíches na avenida Bezerra de Menezes, pintamos nele a inscrição “Outras palavras”, batizando-o com o nome do inventivo álbum de 1981. Fiz o mesmo quando depois, com um sócio, Jorginho, abri um efêmero boteco no Bom Jardim.
A esse tempo, eu garatujava uns poeminhas juvenis, seguindo a trilha da geração mimeógrafo. Sonhava em lançar um livro que teria como epígrafe versos da canção-título daquele álbum: “Tinjo-me romântico/ Mas sou vadio computador”. Ou, quem sabe, “Crista do desejo, o destino deslinda-se em beleza”.
Eu andava, para cima e para baixo, com o volume do “Literatura comentada”, da Editora Abril, sobre Caetano, debaixo do braço. Lia-o sem parar, no ônibus, em casa, nos intervalos das aulas. Até descobrir, em um sebo do centro de Fortaleza, um exemplar de “Alegria, alegria”, o livro raríssimo de Caetano, que comprei por uma pechincha. Virou minha bíblia.
A esse tempo, eu dava aulas em colégios de ensino fundamental e, no fim do ano letivo, ao participar de um amigo-secreto com alunos e outros professores, avisei para quem houvesse tirado o papelzinho com meu nome: “Quero como presente o novo disco do Caetano, o ‘Totalmente demais’”.
“Onde queres revólver, sou coqueiro/ Onde queres dinheiro, sou paixão”, eu cantava, com extremada convicção, como se os versos fossem meus. Quando comecei a trabalhar, enfim, comecei a comprar todos os discos de Caetano, fossem novos ou usados. Já empregado em jornal, assisti, maravilhado, no Theatro José de Alencar, ao show “Circuladô de Fulô”, sobre o qual escrevi uma resenha apaixonada. Quando moramos na Bahia, eu e Adriana, de mãos dadas, fomos vê-lo no réveillon de 2002, no Farol da Barra.
De lá para cá, nunca mais deixei de comprar cada um de seus discos, religiosamente, tão logo foram sendo lançados. No aniversário de 98 anos de Dona Canô, viajei a Santo Amaro da Purificação para escrever uma reportagem sobre a festa, publicada na revista “Contigo!”. Tive vergonha de tietar, explicitamente, o filho da aniversariante. Procurei não dar muito na vista.
O tempo passou e cá estou, morando em Portugal. Pouco antes da pandemia, eu e Adriana assistimos, comovidos, no Teatro Coliseu, aqui no Porto, ao show “Ofertório”, no qual Caetano dividiu o palco com os filhos. Ouvimos, aplaudimos, sorrimos, choramos de emoção.
No último domingo, Caetano Veloso fez 80 anos. Daqui a dois anos, farei 60. Sou grato por ser contemporâneo de um gênio. Foi ele quem me ensinou a amar a música e a poesia – e, até hoje, tem preenchido meus dias com seus versos e canções. Ele nem sabe disso, mas Caetano vem compondo a trilha sonora de minha vida.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor