Enquanto escrevo, lá fora faz um calor dos demônios. Nos últimos dias, os termômetros de Portugal chegaram a ultrapassar a marca dos 40 graus (em Pinhão, no centro da região do Douro, fez 47 no final de semana). Para poder trabalhar com um mínimo de conforto, a garrafa de água gelada tem de ficar sempre ao alcance imediato da mão.
Sorvo goles seguidos e desesperados, no gargalo mesmo, deixando o líquido encharcar a boca, embeber a língua e descer em cachoeira garganta abaixo. Tenho dificuldades em lidar com o calor. Ele me desconcentra, embaralha-me as ideias, dificulta-me a escrita. Dá-me náuseas, dor de cabeça, fadiga extrema.
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Não se trata, diga-se, do calor típico de minha terra, Fortaleza, aqueles costumeiros 28 graus de média anual, amainados pela brisa marítima. A sensação, aqui, é a de se estar dentro de uma fornalha a lenha. Sai-se à rua e o bafo de dragão destroça o ânimo de qualquer indivíduo. O sol golpeia as fachadas das casas feitas de pedra, o que multiplica — e propaga ainda mais — a quentura.
Pela janela, vejo lá embaixo a exasperação refletida no rosto dos que passam, aqueles que se arriscaram a sair à rua — quase todos turistas louros, de bermudas, óculos escuros e pele queimada, europeus de países frios que vêm tirar o mofo no escaldante verão português.
Evito sair com o sol a pino, adio a hora do almoço. No trecho da rua onde fica meu escritório, no bairro do Bonfim, não há árvores. Uma lufada demoníaca de vento, quente e canalizado, adentra pelo corredor de sobradões coloniais. Do asfalto, irradia-se a ondulação do mormaço.
Quando cheguei em Portugal, com filhas em idade escolar, estranhei os três meses de férias daqui, no meio do ano, entre os meados de junho e setembro. Bastou ser confrontado com o primeiro verão local para entender a pertinência da medida. Quem aguentaria ir à escola e assistir às aulas com tamanha canícula?
Em muitas vitrines de lojas e escritórios, vê-se a plaquinha ou cartaz informando férias coletivas de funcionários:. “Saímos para o verão. Voltamos em setembro”. Não tivesse de escrever minhas colunas de jornal e os capítulos de um novo livro, iria seguir tão sábio exemplo.
Mas, para onde ir? País afora, interior adentro, é ainda pior. Imagens do satélite Sentinela-3B, do Projeto Copérnico, capturadas por câmeras especiais, oferecem-nos uma visão assustadora. Parecem fotografias da superfície solar — ou do próprio inferno.
Nelas, toda a Península Ibérica surge recoberta por uma colossal massa de ar quente, resultando em uma paleta de cores que vai do alaranjado intenso ao vermelho escuro — e, também, o completamente preto. Em algumas zonas do Alentejo, pontos acinzentados indicam que a temperatura do solo ali tem ultrapassado os 60 graus.
Como consequência da onda de calor, de norte a sul do país multiplicam-se os focos de incêndios rurais. A maioria deles, segundo as autoridades, provocados pela mistura inflamável de altas temperaturas, vegetação ressequida, proliferação de eucaliptos no lugar da floresta nativa, abandono de propriedades, falta de limpeza de terrenos, negligências de toda ordem e, sabe-se, atos criminosos.
Na Península inteira, já são mais de mil mortes atribuídas à vaga de calor. Idosos, crianças e doentes crônicos são as principais vítimas. Na tevê, as cenas de casas, prédios e matagais em chamas se sucedem a cada minuto, monopolizando a pauta dos telejornais.
O rastro de destruição se espalha por todos os lados. Aldeias inteiras são evacuadas, estradas são obstruídas, aviões derramam tanques e mais tanques de água sobre o fogaréu.
Os incêndios agora se alastram por todo o continente europeu.
Com a crise climática, as notícias se repetem, a cada ano, rotineiramente assustadoras. A Terra está queimando. Literalmente.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor