Livro faz justiça ao cearense Mendez, gênio da caricatura

Legenda: Cearense de Baturité, Mário Mendez ilustrou livros e capas de discos, concebeu cartazes, desenhou cenários para teatro e pintou quadros
Foto: Ecomuseu de Pacoti

A cantora Marlene, Rainha do Rádio, quando o via, tapava o rosto e saía correndo, para não ser caricaturada. Orlando Silva, o Cantor das Multidões, ficou furioso quando foi desenhado por ele com feições de carneiro. Dalva de Oliveira, a Estrela da Voz, teria chorado de desgosto por uma semana inteira, ao se ver retratada por Mendez na revista “Radiolândia”

Outros, ao contrário, orgulhavam-se de ter sido alvo de seu traço irreverente, personalíssimo. “Você já foi caricaturado pelo Mendez? Não? Então você ainda não é famoso. Pois eu já fui caricaturado por ele duas vezes!”, gabava-se Humberto Teixeira, parceiro do Rei do Baião, Luiz Gonzaga.

Getúlio Vargas, sem pedir licença, utilizou uma caricatura, desenhada por Mendez, na candidatura presidencial de 1950: “Ele voltará”, diziam os panfletos de campanha, na qual o célebre desenho do velho baixinho, gorduchinho e sorridente foi empregado quase como uma espécie de logomarca, depois reproduzido à exaustão em outros impressos, canecas, carimbos, broches, caixas de fósforos e bonequinhos de bronze ou porcelana.

Difícil encontrar algum personagem da vida política, cultural e social brasileira, no período compreendido entre as décadas de 1920 e 1990, que não tenha sido objeto de uma caricatura assinada por Mendez.

De Portinari a Chacrinha, de Emilinha Borba a Ayrton Senna, de Pixinguinha a Belchior, de Juscelino Kubitscheck a Alcione, de Eurico Gaspar Dutra a Gal Costa, de Carmem Miranda a Jorge Amado, de Getúlio Vargas a Carlos Drummond de Andrade, de Villa-Lobos a Chico Buarque. Humberto Teixeira tinha razão: se por acaso não foi caricaturado por Mendez, o sujeito não terá sido mesmo tão importante assim.

Cearense de Baturité, Mendez foi um dos maiores artistas gráficos brasileiros de todos os tempos. Mário de Oliveira Mendes, conforme constava na certidão de nascimento, trabalhou em alguns dos principais veículos de comunicação do País. Em todos eles, marcou época e impôs seu estilo único, inigualável.

Legenda: As rainhas do rádio na representação de Mário Mendez
Foto: Ecomuseu Pacoti

Pois agora Mendez é homenageado em um livro primoroso, de autoria de um jovem historiador, também cearense e com raízes baturiteenses: Levi Jucá, graduado e mestre em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). São 256 páginas que nos permitem fazer uma viagem no tempo, com reproduções em preto e branco e em cores, impressas em papel couchê fosco de excelente qualidade, com projeto gráfico caprichado, tamanho grande (21 x 27 cm) e capa dura.

O volume “Mendez, mestre da caricatura”, edição do Ecomuseu de Pacoti faz justiça à grandeza do personagem. Além do texto enxuto, limpo e objetivo de Jucá, o leitor pode acompanhar, por meio de imagens extraordinárias e muito bem selecionadas, todo o percurso profissional de Mendez, desde as primeiras colaborações do artista para jornais e revistas cariocas, nos anos 1920.

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Depois de se passar por órfão (para evitar ter que pedir autorização aos pais), inscrever-se na Marinha, deixar Fortaleza e servir no Arsenal da Ilha das Cobras, no Rio, Mendez publicou seu primeiro desenho na fluminense “Revista Musical”, em 1925: uma caricatura de Francisco Braga, compositor do Hino da Bandeira e maestro da banda do regimento.

A partir daquele mesmo ano, o jornal carioca A Manhã passou a trazer, diariamente, no cabeçalho, ladeando o nome da publicação, pequenas charges assinadas por Mendez, relativas ao noticiário do momento. Não parou mais depois disso. Colaborou para “A Noite Ilustrada”, “Vamos Ler”, “Radiolândia”, “O Malho”, “Revista do Rádio”, “Revista da Semana” e “O Cruzeiro”, entre outras publicações de prestígio à época

Ainda ilustrou livros e capas de discos, concebeu cartazes, desenhou cenários para teatro e pintou quadros, com os quais realizou exposições em galerias de arte — rompendo assim o preconceito acadêmico que em geral incide contra os caricaturistas, tidos como artistas “menores”.

O Mendez autor de óleos e aquarelas, faceta menos conhecida do grande público, também está presente no livro de Jucá, que garimpou arquivos, bibliotecas e hemerotecas, além de bater à porta de familiares e amigos, para recuperar tudo de mais representativo nascido dos lápis e pincéis do artista.

Em 1950, Mendez publicou a primeira edição de “Aprenda a desenhar caricaturas”, livro depois reeditado com vários títulos similares, incluindo “Como fazer caricaturas”, em sucessivas tiragens campeãs de venda pela Ediouro. Conheço amigos cartunistas e caricaturistas, colegas de imprensa, como Klévisson Viana, que dizem ter começado a desenhar, ainda adolescentes, sob a influência de tais publicações.

Mendez aconselhava os novatos a procurarem ocasionais semelhanças entre os traços fisionômicos do caricaturado e os contornos da aparência de algum animal. “Se

você, olhando para determinado indivíduo, tem facilidade em descobrir que ele tem cara de mamão macho, ou de um caroço de manga chupado, ou ainda que se parece com um porco ou uma raposa, você indiscutivelmente é caricaturista”, dizia, com a verve que lhe era peculiar. Ele próprio, em uma autocaricatura famosa — que, por sinal, ilustra a capa do livro de Jucá —, chegou a se desenhar com feições caninas.

Se, nos anos mais recentes, nomes como Belmonte, J. Carlos e Nássara têm sido lembrados em ótimas publicações — com destaque para os magníficos livros sobre a obra de J. Carlos, organizados por Luiz Antonio Simas e Cássio Loredano —, o trabalho de Mendez há muito necessitava dessa homenagem, providenciada em boa hora por Levi Jucá.

“Mendez, o mestre da caricatura” apresenta-o às novas gerações e, também, mata as saudades de quem sempre reconheceu, naquele cearense de Baturité, um dos grandes gênios das artes gráficas nacionais. “Os historiadores de amanhã irão se utilizar de seus desenhos como fortes subsídios”, previu J. Carlos, em entrevista de 1941, citada na epígrafe no capítulos de apresentação do livro.

Levi Jucá, historiador sensível e arguto, vem contribuir, ainda mais, na concretização da profecia. “Não sendo caricaturista, desenhista ou pintor, fiz meu quadro com as tintas da história e memória”, ele diz. Pois o fez muito bem. E todos nós, pesquisadores da área, lhe somos imensamente gratos por isso.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor

 

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