As lembranças do meu primeiro e grande amigo de infância

Legenda: Nos finais de tarde, depois de assistirmos na tevê a mais um episódio de “Perdidos no espaço”, “Terra de gigantes” ou “Túnel do tempo”, corríamos para o quintal, onde reconstituíamos as principais cenas do dia
Foto: Reprodução

Ele foi meu primeiro e grande amigo de infância. Nossas casas, na rua XV de Novembro, lá em Caucaia, eram vizinhas, e os respectivos quintais, separados por uma cerca de mourões rústicos e fios de arame farpado — no meio da qual abrimos um flanco pelo qual podíamos nos esgueirar, sem maiores dificuldades e arranhões, de um lado para outro, para então passarmos a tarde em jogos e brincadeiras.

Eu e Ricardo, ambos aos onze anos, tornamo-nos inseparáveis. No dia em que o conheci, não pude deixar de reparar na sua aparência desarmônica, um tanto quanto bizarra. Tinha a cabeça torta e muito grande, desproporcional ao resto do corpo franzino. A testa protuberante, pernas e braços muito finos, uma meia corcunda, o peito de pombo. Os lóbulos das orelhas eram rasgados e pontiagudos; as mãos, enormes; os dedos, separados demasiadamente uns dos outros.

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Características físicas que lhe valeram apelidos maldosos — “Helicóptero”, para os da rua; “Tortinho do Vô”, para os próprios primos. O “Vô”, no caso, era seu avô, que morava em Iparana e, segundo relatos familiares, o havia resgatado, ainda recém-nascido, das dunas da praia, onde teria sido deixado pela mãe, ao relento da noite, após o parto clandestino decorrente de gravidez indesejada.

As particularidades teriam sido fruto de má formação fetal — a mãe procurara ocultar o crescimento da barriga, inclusive amarrando com tiras de gaze um prato ao abdômen, o que causara a compressão do útero, dificultando a nutrição do feto.

Pelo menos era isso o que o próprio Ricardo me contava e recontava a todo instante — não exatamente com essas mesmas palavras. Fazia-o muito mais para louvar a gratidão que sentia pelo avô, a quem se referia como um herói, do que para lastimar as negligências da mãe, de quem pouco falava, além desse episódio trágico e específico.

Mas, criado pela tia, não era um menino triste. Uma de suas diversões prediletas era pedir para minha mãe deixá-lo regar nossa pequena horta doméstica. Gostava de sentir o cheiro exalado pela terra molhada e pelas folhinhas de coentro em contato com a água. Cantava, feliz da vida, enquanto se dedicava à tarefa. Com um falso inglês, entoava trechos de “Feelings”, a canção de Morris Albert, que ouvia na Discoteca do Lisboa, da Rádio Assunção, ou na Parada dos Maiorais, da Ceará Rádio Clube, seus programas prediletos.

Nos finais de tarde, depois de assistirmos na tevê a mais um episódio de “Perdidos no espaço”, “Terra de gigantes” ou “Túnel do tempo”, corríamos para o quintal, onde reconstituíamos as principais cenas do dia, cada um encarnando o personagem favorito. Enquanto eu brincava de ser Will Robinson, o garoto prodígio, ele adorava fazer os trejeitos, caras e bocas do Dr. Smith — “Oh, dor!”, “Oh, céus!”, dizia, caprichando na interpretação.

Nem sempre dávamo-nos assim tão bem. Brigávamos feio, como toda dupla de meninos daquela idade. Trocávamos sopapos, xingávamo-nos um ao outro, eu aplicava-lhe uma boa quantidade de cascudos. Ele ia embora chorando, prometendo nunca mais voltar, dizendo jamais querer falar comigo de novo. No dia seguinte, retornava, perguntando se eu queria brincar de “Agente 86”. Até deixava que eu fizesse o papel principal, de Maxwell Smart.

Nos finais de semana, desaparecia de vez. Saía sábado bem cedo e só retornava no domingo à noite. Eram os dias em que ia visitar o avô. Aproveitava para “pastorar” os automóveis nos estacionamentos à céu aberto de Iparana, em troca de algumas poucas moedas que me exibia, todo orgulhoso, na segunda-feira de manhã.

De vez em quando, pedia-me ajuda para fazer as lições escolares. Lembro-me de seus cadernos desleixados, a letra garranchosa, a dificuldade que tinha para absorver as mais simples noções matemáticas e regras gramaticais. Se era um fracasso nos estudos, acabou por se revelar dono de memória prodigiosa, quase inacreditável, ávido por aprender e decorar tudo o que dissesse respeito a futebol.

Certa tarde, pediu-me emprestada a edição do Almanaque Abril, que meu pai tinha comprado poucos dias antes. Uma semana e meia depois, quando me devolveu o volume, desafiou-me a perguntar o resultado de qualquer partida do campeonato brasileiro, dos campeonatos estaduais ou da Copa Libertadores da América daquele ano de 1974.

Para meu espanto, sabia o placar exato de todas as partidas — eu disse, todas — realizadas na temporada. Não importava se era campeonato goiano, cearense, amazonense, pernambucano, gaúcho ou qualquer outro. Tinha todos os jogos na ponta da língua. Quando contei isso em casa, à hora do almoço, meu pai não acreditou. Fez questão de tirar o assunto à prova. Ficou boquiaberto, igual a mim, quando viu Ricardo responder, com um sorriso vitorioso e sem jamais titubear, cada pergunta que lhe era feita.

Depois disso, passei a lhe emprestar também as edições da revista Placar, que papai comprava religiosamente. Foi o quanto bastou para que Ricardo, baseado na sessão que trazia as fichas técnicas dos jogos, passasse a recitar a escalação de qualquer time brasileiro, fossem eles grandes equipes do Rio de Janeiro e São Paulo ou pequenos times do Piauí e de Sergipe.

Além dessa assombrosa capacidade de memória, tinha outra habilidade insuspeitada. Era craque imbatível no futebol de botão. Seus dedos, aparentemente inabilitados pelas deformidades ósseas, conseguiam efeitos surpreendentes ao manejar a palheta e movimentar os pequenos discos de acrílico sobre o tablado de madeira. Pode-se dizer que inventou, para o futebol de mesa, o equivalente ao drible nos gramados.

Dois ou três anos depois, quando minha família se mudou para Fortaleza, eu e Ricardo passamos a nos ver bem pouco. Lembro-me de ele ter ido apenas uma ou duas vezes em nossa nova casa. Depois disso, perdemos o contato. Deixei de ter notícias dele.

Até o dia em que minha irmã mais velha chegou com a informação de que meu amigo estava doente. Os médicos haviam lhe detectado um “sopro na aorta” — ao ouvir o diagnóstico, ele teria perguntado ao clínico, entre sorrisos, brincando com a similitude das palavras “aorta” e “horta”, como então deveria fazer para regar os pés de coentro que trazia dentro do coração.

Coração, aliás, que não resistiu muito tempo. Ricardo morreu poucas semanas depois disso. Tinha catorze anos. Desolado, peguei um ônibus da empresa Vitória e fui acompanhar o velório, em Caucaia. O pequeno caixão foi levado por seus colegas do grupo escolar, devidamente uniformizados, camisas brancas e calças azuis-claras. Mas não consegui tomar parte daquele cortejo de meninos contritos e de olhos vermelhos. Não fui ao cemitério. Fiquei no meio do caminho, sentado sozinho em um banco da praça da matriz.

“Oh, dor! Oh, céus!”, pensei.