Como e por que passei a odiar as gaivotas

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Ainda não sabia muito bem se as amava ou as odiava. Nascido em um local onde não há gaivotas, sempre as imaginei seres etéreos, mágicos, altivos. Isso, talvez, por influência da leitura pré-adolescente de “Fernão Capelo Gaivota”, o livrinho motivacional de Richard Bach, que caiu-me às mãos e impressionou-me muito antes de eu ser apresentado a outras narrativas mais engenhosas e imaginativas.

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Minha visão idealizada a respeito das gaivotas talvez se devesse também, em boa parte, à lembrança da canção “Lenda do Pégaso”, de Jorge Mautner e Moraes Moreira, gravada por este último em 1980, no LP “Bazar brasileiro”. Na música, um “passarinho feio/ que não sabia o que era, nem de onde veio”, “sonhava em ser uma gaivota/ por que ela é linda e todo mundo nota”.

O escritor norueguês Karl Ove Knausgard, porém, discordaria. Para ele, não há ave mais feia no mundo. “São como dinossauros”, compara. “A estranheza delas é terrível”. Desagrada-lhe, além da suposta aparência pré-histórica, os ruídos que emitem: “Um som cortante e pouco agradável”, escreve, nos ensaios breves de “No verão”, um dos quatro livros que dedicou às estações do ano.

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Desde que vim morar em um lugar onde há gaivotas por toda parte, minhas fantasias e ilusões a respeito delas, admito, se desvaneceram. Não porque concorde integralmente com Knausgard. Até continuo achando-as belas, principalmente quando planam lá longe, no horizonte, o branco das asas posto em contraste com o azul do céu.

Mas, depois que fui apresentado às facetas mais brutais desses bichos, passei a evitá-los, mais do que a admirá-los. Já presenciei uma gaivota atacando um passarinho para roubar-lhe a comida, um naco de pão, desferindo-lhe bicadas de tirar sangue e arrancar tufos de penas. Também já as vi em bandos ruidosos, a emporcalharem as ruas, assaltando o conteúdo das lixeiras e rasgando sacos de lixo, feito celerados orgulhosos da própria falta de educação e compostura.

Pelos jornais, fico sabendo que, assim como os pombos, elas são consideradas pragas urbanas. Devido à proliferação descontrolada, estragam a pintura de edifícios e automóveis com seus dejetos; entopem chaminés e calhas, o que provoca inundações residenciais; ameaçam o ecossistema ao desferirem ataques contra outras espécies menores. Omnívoras, chegam a agredir os humanos às mesas de cafés e restaurantes, para atirarem-se aos pratos em revoadas furiosas e hitchcockianas. Tornaram-se, em muitas cidades costeiras europeias, uma calamidade pública.

Dia desses, uma quase me estragou o domingo, bombardeando-me o terraço com uma saraivada de cocô que despencou a poucos centímetros da churrasqueira onde as linguiças crestavam sobre as brasas. Olhei para cima e vi o animalaço de asas ameaçadoras e abertas, soltando um grunhido esganiçado, estertor que soou-me como uma sórdida gargalhada de escárnio.

As gaivotas parecem ter mesmo um pérfido senso de humor. Procuram os lugares mais elevados para pousarem — o topo de monumentos históricos estão entre seus favoritos —, e não arredam dali enquanto não tingem tudo com a gosma esbranquiçada que expelem de suas respectivas cloacas, em quantidade assustadora. Uma vez ressequida e transformada em pó, aquela nojeira cheia de bactérias é levada pelo vento e contamina o ar da cidade.

“Caguei”, fazem questão de proclamar, como se fossem um valentão ignorante, irresponsável e boca suja. Pensando bem, passei a abominar as gaivotas. Que me perdoem Mautner e Moraes. Knausgard tem toda razão.