Sem compromisso com as urgências, mas atento aos pequenos significados do mundo

Legenda: Para quem morou por vinte anos em São Paulo passar a viver em uma rua pacata é uma regalia
Foto: AFP

Os livros ainda estão todos por arrumar. Atirei-os às estantes de qualquer maneira, a esmo, sem qualquer critério de organização. Não houve tempo nem disposição, ainda, após a mudança recente de apartamento, para colocar alguma ordem na babel das prateleiras. Mas há muitas compensações à bagunça provisória e à canseira provocada pelo encaixotar e desencaixotar insano das últimas semanas.

Sempre nutri particular simpatia pelas expressões “cave” e “rés-do-chão”, com as quais os portugueses denominam, respectivamente, o porão e o andar térreo de um edifício. Pois eis-me aqui e agora, na cidade do Porto, morando na cave direita e no rés-do-chão esquerdo de um predinho de quatro andares e muro baixo, bem ao meio de uma ruazinha tranquila de paralelepípedos e quase nenhum trânsito.

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Observo lá fora, pela janela, a vizinha do terceiro andar, uma senhora idosa e de aparência tipicamente portuguesa, na afetuosa inspeção diária pelo pequeno jardim do prédio. É ela que, lenço à cabeça e sorriso ao rosto, rega as plantas e conversa com as flores e ramagens, sempre aproveitando para conferir se os vasilhames e potinhos com água e comida para os muitos gatos que vivem soltos pela rua estão devidamente abastecidos.

Os bichanos — todos “rafeiros”, termo lusitano para “vira-latas” — são muitíssimo bem tratados pelos moradores. Dia desses, quando eu saía para o passeio noturno com Bela, nossa cadela de estimação, deparei na calçada com outro vizinho, o do segundo andar, que levava debaixo do braço um pacote de ração para felinos, sabor atum. Ia alimentar os bichinhos que já o aguardavam, sentados sobre as próprias caudas e um ao lado do outro, em gulosa expectativa para receber a iguaria.

Para quem morou por vinte anos em São Paulo e, ainda há pouco, em uma região bem movimentada do Porto, passar a viver em uma rua pacata como esta, para a qual mudei a menos de um mês, é uma regalia.

A vizinhança saúda os passantes com bons dias, boas tardes e boas noites. De hora em hora, escuta-se o badalar do sino da igreja mais próxima; a todo instante, o chilrear de passarinhos; de quando em quando, o guinchar das gaivotas.

Do terraço dos fundos, valendo-se da topografia irregular do terreno, é possível vislumbrar o verde das colinas no horizonte mais remoto. À meia distância, o rumor de uma autoestrada parece estar ali apenas para nos lembrar que os dependentes de velocidade e gasolina não vivem assim tão longe daqui.

Volto ao escritório, sento diante do computador e garatujo essa croniqueta descompromissada. Olho de soslaio para as prateleiras e adio, mais uma vez, a tarefa de organizar as lombadas por temas, autores e gêneros literários. Enquanto isso, um dos gatos da rua saracoteia sobre o muro lá fora. Invejo-lhe o porte altivo, a consonância entre a agilidade e o vagar, a justa medida entre a destreza e a languidez, a harmonia perfeita entre o desembaraço e o aprumo.

Mudar de ares me fez ver lições, significados e poesia até nas menores insignificâncias.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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