O tal Acordo Ortográfico serve apenas para semear grandes desacordos

Legenda: No fundo, em vez de acordo, o que temos é um grande desacordo ortográfico
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Os livros publicados por editoras brasileiras costumam trazer, na página de créditos, a informação de que foram editados conforme o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa — tratado internacional que, firmado em 1990, por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e, posteriormente, Timor Leste, entrou em vigor em nosso país a partir de 2009. Por isso não deixa de ser curioso que obras de autores brasileiros precisem ser “adaptadas” ao serem publicadas em Portugal.

Acabo de passar por essa experiência insólita. Arrancados da terra, meu trabalho mais recente, começa a chegar na próxima semana às livrarias lusitanas. Ao ler as provas da edição portuguesa, constatei que muitas palavras estão grafadas de forma distinta da edição original. Onde escrevi “trajetória”, “incômoda”, “retangular” e “rebatizado”, por exemplo, os leitores lusos lerão, respectivamente, “trajectória”, “incómoda”, “rectangular” e “rebaptizado”.

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Minha estimada e criteriosa editora em Lisboa, Eurídice Gomes, chefe da Divisão Literária do braço português do grupo editorial Penguin Random House, já havia me avisado que tal iria ocorrer. É uma praxe da casa, pelo menos para os gêneros de não ficção, ela me explicou. Respondi-lhe que em nada isso me incomodava, já que o propósito — óbvio e perfeitamente justificável — é proporcionar maior legibilidade ao texto para o público local.

Eurídice e sua equipe de editores e revisores foram extremamente respeitosos em relação à versão original. Mantiveram estruturas frasais, colocações pronominais, gerúndios e demais variantes de sabor tão brasileiro. Aqui e ali, é verdade, trocaram um ou outro vocábulo que, de uso corrente no Brasil, não são conhecidos em Portugal.

Assim, na narrativa do prólogo, que se passa na Nova York nos dias atuais, substituiu-se “ônibus” por “autocarro”; “celular” passou a “telemóvel”; “terno” (conjunto de calça, paletó e gravata”) virou “fato”. A propósito: Nova York está lá como Nova Iorque; Amsterdã, como Amsterdão.

No mais, quase não há diferenças significativas entre uma versão e outra. Contudo, chama atenção o fato de que, embora Brasil e Portugal tenham aderido ao Acordo Ortográfico — documento que dizia ter por objetivo criar uma “ortografia unificada para a língua portuguesa” —, continuemos a escrever assim, em registros tão dessemelhantes, ao ponto de um livro brasileiro precisar sofrer alterações para ser lido por um português e vice-versa.

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Minhas duas filhas mais novas estudam aqui em Portugal e já foram advertidas por professores — com maior ou menor veemência — de que se considera “inadequado” que um aluno proveniente do Brasil se expresse, nos trabalhos e exames escolares, em “brasileiro”, variante tida como “errada” por desviar-se do padrão normativo do português europeu.

Preconceitos linguísticos e xenofobias inconscientes à parte — já ouvi de um português, em presumido tom de elogio, que “em se tratando de um brasileiro”, até que escrevo “muito bem” —, existe algo nesse angu linguístico um tanto quanto difícil de engolir. A pretexto do mesmíssimo Acordo Ortográfico, os portugueses, que escreviam certas palavras de modo idêntico aos brasileiros, passaram a escrevê-las de forma bastante esquisita para nós.

Nos jornais e revistas lusitanos, sob o argumento de que o Acordo Ortográfico eliminou as “consoantes mudas”, agora é comum ler-se “espetador”, “corrução” “inteletual” e “receção”, assim mesmo, em vez de “espectador”, “corrupção”, “intelectual” e “recepção” (excentricidade que não acontece, ressalte-se, na edição portuguesa de Arrancados da terra).

Ora, o que é “consoante muda” para uns, não o é para outros, mesmo dentro de um mesmo país. Daí a confusão. Ou seja: no fundo, em vez de acordo, o que temos é um grande desacordo ortográfico.

Ademais, sempre me pareceu autoritário imaginar um “português universal”, ou seja, unificado para todos os mais de 250 milhões de falantes do mesmo idioma, forçando uma normatização indiferente à pluralidade de culturas que os caracterizam.

Fernando Pessoa apregoava: “Minha pátria é minha língua”. Prefiro, porém, continuar a fazer coro a Caetano: “Não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria”. Ou seja, quero uma língua que não seja a imagem hierarquizada de um pai ou de uma mãe, mas de uma irmã, com quem se brinca, se cresce junto, se briga, se ama e se odeia. E deixa que digam, que pensem, que falem.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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