Com sete obras do Ceará, 27ª Mostra de Tiradentes traz olhar histórico ao cinema do Estado

Seleção no evento mineiro de dois longas e cinco curtas de diferentes tempos com produção ou coprodução cearense propõe olhares aos movimentos históricos da cinematografia do Ceará

Legenda: As produções cearenses "Meu Amigo Mineiro", curta de 2012, e "Estranho Caminho", longa de 2023, compõem a programação da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes
Foto: divulgação; Linga Acácio / divulgação

Na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes — que ocorre na cidade mineira entre 19 e 27 de janeiro —, a seleção de sete produções ou coproduções cearenses, entre curtas e longas, permite um olhar histórico aos caminhos do audiovisual feito no Estado. Os filmes, de tempos distintos, propõem elaborações possíveis acerca de continuidades e diferenças — temáticas, estéticas e de formas de produção — no Ceará ao longo das últimas décadas.

Duas das obras selecionadas marcam a estreia da seção Clássicos de Tiradentes, que neste ano destaca a produção do coletivo cearense Alumbramento — fundado em 2006 e que teve cerca de uma década de existência —, enquanto as outras cinco são de filmes recentes, sendo um longa e quatro curtas.

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"Farol do cinema brasileiro"

“Se a gente faz uma imagem da mostra nas últimas duas décadas, é possível entender por meio dela as mudanças que o audiovisual vivenciou nesses anos”, aponta Francis Vogner dos Reis, coordenador curatorial da Mostra e um dos responsáveis pela seleção de longas.

“Formas de fomento diversificadas, novos modos de produção, políticas de formação nas universidades ou os cursos técnicos, novo ambiente de políticas públicas de descentralização regional: Tiradentes conseguiu dar uma imagem de todas essas mudanças”, segue o curador. 

Em Clássicos de Tiradentes, ganham exibição o longa “Estrada Para Ythaca” (2010), de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti — lançado em 2010 e vencedor naquele ano da Mostra Aurora, a principal competitiva de Tiradentes — e o curta “Meu Amigo Mineiro” (2012), dirigido pelo cearense Victor Furtado e pelo mineiro Gabriel Martins.

A seção foi criada pela curadoria, como adianta Raquel Hallak, coordenadora geral da mostra e diretora da Universo Produção, para trazer “um recorte de filmes emblemáticos tanto para o evento quanto para a história do cinema brasileiro”.

O longa, na visão da diretora, “redefiniu a década com novas práticas de audiovisual tanto em termos de produção quanto na estética”. “A gente terá a oportunidade de, na visão de hoje, ver o que ele representou, esse caminho que percorreu”, afirma.

“Estrada Para Ythaca”, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes, eRicardo Pretti, foi o vencedor de 2010 da Mostra Aurora, a principal competitiva de Tiradentes
Legenda: “Estrada Para Ythaca”, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti, foi o vencedor de 2010 da Mostra Aurora, a principal competitiva de Tiradentes
Foto: divulgação

Já Francis define que foi o filme cearense que deu “a cara e o recado” do que é a Mostra Aurora. “O coletivo Alumbramento foi pioneiro numa espécie de reorientação, reconfiguração e recriação de modos de produção a partir de novas tecnologias e noções de trabalho em set e autoria”, aponta. 

“Muitos filmes surgiram na esteira do ‘Ythaca’. É interessante voltar o olhar para ele e os filmes do coletivo, porque eles foram um farol do cinema brasileiro contemporâneo”, segue o curador.

Reverberações na produção recente

As obras que compõem a Clássicos de Tiradentes guardam em si “sementes plantadas que estão brotando ainda hoje, seja nas obras deles ou de outros cineastas”, diz Francis. A experiência da Alumbramento, ele avança, influencia direta ou indiretamente realizadores “pela produção independente e coletiva, o trabalho de imaginação que passa pela experiência da cidade e a ousadia estética muito fora do catálogo do cinema contemporâneo mundial”.

Tais características e ainda outras — como as pontes de coprodução entre Ceará e outros estados, acentuada no curta “Meu Amigo Mineiro”, e a relevância de espaços públicos de formação como a Vila das Artes — se fazem presentes tanto nas produções dos anos 2010 quanto nas recentes.

Curta-metragem
Legenda: Curta-metragem "Onde está Mymye Mastroiagnne?", de biarritzzz, é coprodução Ceará-Pernambuco
Foto: divulgação

Os cinco filmes cearenses que completam a presença do Estado na mostra são o longa “Estranho Caminho", de Guto Parente, na Mostra Autorias; e os curtas “Onde Está Mymye Mastroiagnne?” (PE/CE), de biarritz, na Mostra Foco; “Pirenopolynda” (GO/DF/CE), de izzi vitorio, tita maravilha e bruno victor, na Mostra Praça; “Jaci”, de Bruno Loba La Loba, na Mostra Panorama; e “Kila & Mauna”, de Ella Monstra, na Mostra Formação.

Autorias

Outro ponto de conexão entre as produções de tempos distintos é mais pronunciado: a presença de Guto Parente na direção tanto de “Ythaca” quanto de “Estranho Caminho”. “O primeiro ganhou a Aurora em 2010 e, agora, vem na Autorias, no lançamento dessa mostra competitiva”, resume Francis.

O curador lembra ainda que outro cineasta da Alumbramento, Pedro Diógenes, retornou à mostra em 2023 com “A Filha do Palhaço”, longa que ganhou o prêmio do júri popular. 

Como aponta Camila Vieira, curadora cearense e uma das responsáveis pela seleção de curtas em Tiradentes, há uma “continuidade da produção dessa geração de décadas anteriores” ao mesmo tempo em que o evento “também acompanha realizadores que estão começando a fazer seus primeiros filmes agora”.

Legenda: "Jaci", de Bruno Loba La Loba, é um dos curtas cearenses selecionados para a 27ª Mostra de Tiradentes
Foto: divulgação

Estes nomes que despontam se fazem presentes, em especial, na produção de curtas-metragens. No conjunto de obras recentes do formato, a presença de profissionais trans à frente e atrás das câmeras é o destaque, com quatro curtas protagonizados e três dirigidos por pessoas trans. 

Camila observa que o conjunto dos curtas recentes também depõe sobre “a formação de coletivos para a criação de filmes”, assim como há mais de dez anos, mas com “configuração no campo da realização (...) bem mais heterogênea”. As singularidades sociais, de gênero, raça, etnia e sexualidade, inclusive, atravessam “as estéticas e as formas de produção”. 

Presenças LGBTQ+

Camila ressalta o aumento de curtas realizados por pessoas trans, travestis e não bináries. “O cinema brasileiro — e não apenas o cearense — vem sendo protagonizado na frente e atrás das câmeras por outros corpos, outras subjetividades, a partir de outros lugares simbólicos, que até então não tinham espaço em comparação com uma hegemonia de realização de cinema no nosso país”, elabora a curadora.

O movimento, ela aponta, se relaciona com “a constatação de uma desigualdade histórica no campo da realização de cinema no Brasil” e, ainda, “a força das ações afirmativas”. “O cinema brasileiro mudou porque o Brasil mudou”, resume Francis. 

Legenda: "Canto dos Ossos", longa cearense, venceu a Mostra Aurora de 2020
Foto: divulgação

O curador identifica a partir da segunda metade dos anos 2010 um fortalecimento das presenças LGBTQ+ na produção do Ceará. “Vemos hoje fortemente, mas vem de certo tempo, já vemos em ‘Tremor Iê’, ‘Canto dos Ossos’ (longas cearenses exibidos em Tiradentes) e em curtas em especial que vieram da Vila das Artes”, aponta. 

“Os filmes da Alumbramento eram em maior parte de homens cis, mas a mudança do país e do audiovisual, o tipo de movimentação que buscou dar visibilidade e colocar em discussão questões de gênero, raça e identidade foi, a partir de 2015, 2016, determinante para a produção”, avança Francis.

“Hoje, nos filmes dos próprios diretores que passaram pela Alumbramento, essas questões, seja na ficha técnica ou nos próprios personagens, já estão implicadas com mais força”, reconhece.

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