Um conjunto de filmes que abordavam a homossexualidade de maneira experimental em forma e livre em conteúdo despontou na Paraíba nos anos finais da ditadura militar. Parte dessa produção está disponibilizada gratuitamente no site da Cinelimite, organização sem fins lucrativos dedicada à exibição, distribuição e digitalização do cinema brasileiro.
A mostra "A Onda de Filmes Queer em Super-8 da Paraíba" destaca o movimento a partir de cinco curtas-metragens lançados entre 1981 e 1983. As produções — que já circularam pelo País, incluindo passagem pelo Cinema do Dragão, em Fortaleza — estão disponíveis on-line até domingo, 30, em alusão ao mês do orgulho.
- “Perequeté” (1981), de Bertrand Lira
- “Closes” (1982), de Pedro Nunes
- “Baltazar da Lomba” (1982), do coletivo ativista queer Nós Também
- “Era Vermelho Seu Batom” (1983), de Henrique Magalhães
- “Miserere Nobis” (1983), de Lauro Nascimento
Abertura das ideias
O cineasta Bertrand Lira, um dos nomes pioneiros dessa produção, contextualiza em entrevista à coluna que o conjunto de filmes surgiu na esteira da revogação do Ato Institucional nº 5, considerado o mais duro entre os decretos do período da ditadura.
“Entrei no curso de Comunicação em 1979, vindo do interior, de Cajazeiras. Na Universidade, se discutiam diversas ideias, professores vinham de fora. Deu certa abertura nas nossas ideias”, inicia.
“Professores nos instigavam a pensar e a questionar a ditadura, o machismo. A gente também estava naquele desejo que vivia reprimido, publicamente não se assumia, e começou a falar desses temas e a fazer cinema”, segue o diretor.
Na mesma época, antes da produção com foco em sexualidade, um curta com viés social produzido pelos cineastas Pedro Nunes e João de Lima ajudou a inspirar alunos da Universidade Federal da Paraíba: “Gadanho”, sobre um lixão da cidade.
“Ele teve uma boa repercussão e a gente viu que era possível fazer cinema. Não era aquela superprodução hollywoodiana. A gente começou a fazer cinema nesse contexto, quando viu esse filme que era questionador sobre a situação social”, aponta Bertrand.
Formações e liberdade criativa
Um fator decisivo para a produção que se desenrolaria a partir dali foram as formações de documentário ligadas à escola do cineasta francês Jean Rouch (1917-2004), promovidas no Núcleo de Documentação Cinematográfica (NUDOC) da UFPB à época.
“Todos os cineastas na mostra, de uma forma ou de outra, participaram dos cursos de ‘cinema direto’. Assim, o treinamento que tiveram foi para trazer uma espécie de abordagem formalista ao documentário”, contextualiza William Marc Cardoso Plotnick, técnico de restauração de filmes na Cinemateca Brasileira e cofundador da Cinelimite.
Como parte das oficinas, os estudantes foram munidos com diferentes equipamentos para possibilitar a produção de filmes, incluindo câmeras Super-8 — formato “mais fácil de usar e menor”, como explica o técnico.
“Qualquer pessoa pode perceber uma grande liberdade de criatividade nesses filmes, algo característico de muitas produções radicais em super-8 da mesma época”, ressalta William.
O curta-metragem de Bertrand, inclusive, é fruto dessa formação. “A gente começou a participar e, como resultado, tinha que ter um documentário. Escolhi (fazer) um filme que falasse de um tema que me incomodava: o preconceito e a intolerância”.
“Perequeté”, pioneiro dessa produção, faz um retrato do dançarino e ator Francisco Marto, conhecido pela alcunha que intitula o curta-metragem. William ressalta que, no conjunto de filmes, é possível perceber “quais cineastas aceitam” e quais “rejeitam” a abordagem ensinada no curso.
“Por exemplo, ‘Perequeté’ adota claramente o formalismo, mas foi feito em 1981 e, portanto, está mais ligado aos cursos universitários. ‘Closes’ e ‘Era Vermelho Seu Batom’, feitos em 1982 e 1983, já estão misturando ficção e documentário numa maneira bem experimental”, observa.
Bertrand define “Closes”, de Pedro Nunes”, como “muito ousado”. “Falou diretamente da homossexualidade, o assunto era esse”, aponta. Na obra, depoimentos de pessoas contrárias e a favor da homossexualidade são permeadas por uma ficção que mostra um rapaz abrindo mão de um namoro por conta do preconceito.
“O cinema brasileiro tem uma história muito interessante de absorver influências internacionais e produzir algo que é seu. Gosto de ver esses filmes como um reflexo dessa tradição”, dialoga William.
Produção queer e política
Apesar do contexto da produção dos curtas ser de maior abertura política, Bertrand compartilha que a repressão resistia na época.
“A gente organizou uma mostra de cinema independente e a polícia federal chegou lá, jogou bombas de gás. A gente teve que correr com os filmes e esconder porque não tinha pedido permissão à censura”, recorda o diretor.
O movimento repressivo, inclusive, não era somente ditatorial, mas sexual. No embalo das produções que surgiam, despontou o coletivo ativista queer Nós Também no Estado. “Ele militou através da arte”, atesta Bertrand, que também foi membro do grupo.
“A gente tinha grupos de estudos para discutir sobre repressão, a origem da repressão sexual e, também discutir, como organizar a militância — já que ninguém ia às ruas, não existia parada, ninguém tinha coragem de botar a cara numa manifestação”, contextualiza.
Entre os frutos do coletivo, está o curta "Baltazar da Lomba" (1982), que tem direção assinada pelo grupo. Bertrand destaca, ainda, os curtas dirigidos pelo professor Lauro Nascimento, um dos fundadores do Nós Também.
Reação a um cinema “assexuado”
“A gente foi, de certa forma, audacioso e corajoso, mas havia certa ingenuidade”, reconhece, na produção, Bertrand. “Entramos no embalo da abertura política, dos presos políticos voltando, da anistia. A gente estava caminhando para uma democracia e isso nos estimulou a falar do que nos incomodava”, avança o diretor.
Um dos incômodos era a ausência do sexo na produção da época no Estado. “O cinema paraibano era assexuado. Você não ia ver cena (de sexo), a não ser hétero e olhe lá. Não se falava de sexo”, afirma
Apesar de dizeres contrários que relegam as lutas LGBTs, indígenas, negras e de mulheres ao segundo plano, Bertrand é assertivo ao definir os filmes queer paraibanos como políticos.
“Quando você questiona o status quo, a sociedade, os valores morais da época, tudo é político. As escolhas que você faz na vida são políticas. Política é viver no mundo, atuar, agir e reagir. Esses filmes foram uma reação ao conservadorismo da sociedade paraibana da época”, sustenta.
Em relação à produção audiovisual contemporânea, os filmes queer paraibanos ensinam muito, como reflete William:
“Qualquer pessoa queer ou trans pode se inspirar nesses filmes. Elas podem saber que a luta para trazer histórias sobre pessoas como elas para as telas vem ocorrendo há muito tempo e podem se ver como parte de uma história profunda e desafiadora, para a qual, esperamos, também possam contribuir”
Filmes que precisam ser “salvos, preservados, vistos”
A realização da mostra em formato on-line para marcar o mês do orgulho é apresentada em parceria entre a Cinelimite, o NUDOC da UFPB e a Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA). Os movimentos de resgate dessa produção, no entanto, começaram há mais de uma década.
Como explica William, uma primeira iniciativa de preservação de filmes em Super-8 da Paraíba ocorreu em 2013, com o projeto "Cinema e Memória - O Super-8 na Paraíba nos anos 1970 e 1980", de Fernando Trevas Falcone e Lara Santos de Amorim.
A partir dele, o som dos filmes conseguiu ser preservado com qualidade, mas ainda não as imagens. Anos depois, o conjunto de obras chegou ao conhecimento da Cinelimite, organização criada em 2020.
“Quando vimos esses filmes pela primeira vez, ficamos em choque. Pareceu-nos que os filmes mudam totalmente as perspectivas comuns sobre o cinema gay do século XX no Brasil — eram filmes revolucionários em seu espírito e inovadores em sua abordagem das questões queer em sua época”
“Para nós, esses filmes precisavam ser salvos, preservados, vistos, mais discutidos e mais conhecidos”, segue William. Com a criação no projeto Digitalização Viajante, em parceria com a ABPA, a Cinelimite digitalizou no total 300 filmes em Super-8 em seis cidades do Brasil.
Cerca de 100 filmes do total que foi digitalizado eram da Paraíba, o que foi conseguido com o apoio do NUDOC. “No final, usamos a matriz de som produzida em 2013 junto com nossa nova imagem 2K”, resume William.
O técnico, no entanto, destaca que “o resgate das obras começa, de fato, no momento em que elas são feitas”. “Temos muita sorte pelo fato de os cineastas Pedro Nunes e Henrique Magalhães terem tido a visão de preservar cópias em suas casas, além do trabalho do NUDOC em preservar a produção cinematográfica do UFPB nesse período”, aponta.
“Todos que pensaram que os filmes deveriam ser mantidos em segurança e que atuaram para que isso acontecesse tiveram impacto no resgate dos filmes”, ressalta. “ E essa luta continuará no futuro. Como preservarmos as cópias digitais? Como garantir que os originais durem mais 50 a 60 anos?”, questiona.
A Onda de Filmes Queer em Super-8 da Paraíba
- Onde: no site da Cinelimite