O que a tripulação faz ao se deparar com passageiros indisciplinados? Veja técnicas
Segundo a plataforma Anacpedia da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), o passageiro indisciplinado é, por definição, aquele que não respeita as normas de conduta em um aeroporto ou a bordo de uma aeronave, ou que não respeita as instruções do pessoal de aeroporto ou dos membros da tripulação e, por conseguinte, perturba a ordem e a disciplina em solo ou em voo.
Nesse contexto de passageiros indisciplinados, segundo o Regulamento Brasileiro de Aviação Civil 108, RBAC no 108, a companhia aérea deve garantir o controle do passageiro por meio de ações como fazer constar no contrato de transporte aéreo a informação de medidas que serão tomadas pelo operador aéreo para coibir condutas típicas de passageiros indisciplinados, impedir o embarque, bem como desembarcar o passageiro indisciplinado no aeródromo mais apropriado.
Ocorre que muitas vezes o método de imobilização de passageiros indisciplinados é considerado hostil e poderia até resultar (no Brasil) em acusações de tentativa de homicídio.
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Isso porque algumas das técnicas utilizadas eram tão gravosas ao passageiro desalinhado, como o conhecido ‘mata-leão’, quando a pessoa controlada é imobilizada pelo pescoço e pode ter sua capacidade de respirar bloqueada.
“Antes, várias das companhias aéreas utilizavam o conhecido ‘mata-leão’, só que o método foi proibido por causa de uma série de mortes, provocadas pelo uso dessa técnica, não na aviação em si, mas em outras instituições. Houve vários casos em que vigilantes acabaram matando as pessoas imobilizadas”, contou à coluna o cearense Erasmo Gomes, diretor de treinamentos da empresa Abrapam.
Segundo Erasmo, as empresas aéreas perceberam que usando essa técnica não só colocavam em risco a vida dos passageiros.
“Nem sempre o passageiro precisa ser imobilizado por causa de terrorismo ou uma situação mais grave. Às vezes é um surto, às vezes é um caso de embriaguez, às vezes uma situação relacionada a problemas psicológicos. E aí imagina como é que você vai justificar que na hora de conter a pessoa que estava em surto, você acabou matando ela? O método da Abrapam foca na segurança dos passageiros, mas também dos comissários.”.
Uma indisciplina não-violenta foi justamente o que aconteceu, por exemplo, no caso de um passageiro que provocou o desvio de um voo da Latam que se dirigia a Fortaleza, que ocorreu no último domingo, dia 31 de agosto. O voo Latam 8125 saiu de Santiago no Chile e teve que pousar no Aeroporto Internacional de Brasília.
No caso, segundo relatos, o homem desrespeitou a tripulação e os demais passageiros, com som alto no celular e obstruindo a passagem das pessoas que passavam no corredor para utilizar o banheiro. Dessa maneira, não se tratava de um caso iminente de risco ao voo.
“Por causa de uma técnica (inadequada), houve até um caso de um comissário que aplicou um mata-leão numa passageira, por ela não querer utilizar máscara”, exemplificou Erasmo Gomes.
Conforme ele, o Judiciário chega a encarar uma contenção dessas como uma tentativa de homicídio.
“Algumas companhias aéreas utilizam técnicas baseadas em artes marciais, inseguras e ultrapassadas, a Azul, por exemplo, hoje usa a técnica desenvolvida pela Abrapam”, afirmou.
Solução cearense em ação
Observando respostas potencialmente desproporcionais a casos não violentos de indisciplina na aviação, Erasmo conta que comparou técnicas de contenção usadas no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos e identificou lacunas, sobretudo na proteção de tripulantes. Convocou, dessa forma, sua equipe para elaborar algo mais simples, eficaz e realmente centrado na segurança dos profissionais a bordo.
O resultado foi a metodologia de Gerenciamento de Comportamento Indisciplinado (GCI).
“Após uma apresentação para instrutores de uma das maiores aéreas do país e um representante da Anac, o modelo foi prontamente aceito e hoje está em uso”.
Erasmo Gomes desenvolveu uma metodologia centrada na prevenção e gestão eficaz de comportamentos indisciplinados em ambientes aeronáuticos.
A atuação de Erasmo ganhou projeção em 2015, quando foi contratado por uma companhia aérea para capacitar gerentes de aeroportos brasileiros no contexto dos Jogos Olímpicos. Ele estendeu a formação a agentes aeroportuários, comissários e pilotos envolvidos nas Olimpíadas.
Sua abordagem já foi adotada por três das maiores companhias aéreas brasileiras e despertou o interesse de agentes da aviação de várias partes do mundo.
Ainda, o profissional instruído no GCI (tripulação) garante autodefesa através de movimentos para repelir murros, ou que podem afastar agressores com empurrões.
“São técnicas operacionais. A nossa abordagem usa o método progressivo da força, utilizada por militares, é muito mais baseada em técnicas de forças de segurança do que técnicas de artes marciais.”, explica.
Crescimento dos conflitos a bordo
Segundo dados da IATA (Associação Internacional de Transporte Aéreo), os incidentes com passageiros indisciplinados registraram forte crescimento nos últimos anos: em 2022, houve uma ocorrência a cada 568 voos, contra uma a cada 835 em 2021.
Em 2023, o patamar piorou ainda mais, chegando a uma ocorrência a cada 480 voos. Ainda que os casos de agressão física permaneçam raros, eles tiveram um incremento alarmante de 61% em relação a 2021, registrando um evento a cada 17.200 voos.
Nos Estados Unidos, a FAA (Federal Aviation Administration) reportou 2.102 incidentes com passageiros indisciplinados em 2024, os quais levaram 43 casos a serem encaminhados ao FBI para investigação criminal — ainda que esse número represente queda em relação a 2021, segue acima da média.
No cenário nacional, a Anac identificou 735 ocorrências em 2023 envolvendo comportamentos impróprios de passageiros em voos e aeroportos — uma média de dois casos por dia e o maior número desde 2019.
Entre janeiro de 2019 e maio de 2024, totalizaram-se 3.011 registros. Em resposta, a Anac lançou, em junho de 2024, uma consulta pública propondo sanções mais rígidas.
As medidas incluem advertências, remoção imediata dos passageiros e, em casos gravíssimos — como agressão física ou tentativa de acesso à cabine de comando —, a proibição de voar por até 12 meses, com criação de uma lista de passageiros non-gratos, compartilhada entre as empresas aéreas.
O projeto ainda prevê a garantia de ampla defesa, e as companhias poderão ser multadas entre R$ 10 mil e R$ 100 mil se descumprirem a norma.
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*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.