O pódio das Ayoluwas: conquistas olímpicas das atletas brasileiras

Aquelas que driblaram o destino traçado por uma estrutura racista e transformaram dor, insultos e prantos em ouro, prata e bronze

Legenda: Bia Souza, Rebeca Andrade e Rafaela Silva: medalhistas pelo Brasil em Paris-2024
Foto: Alexandre Loureiro/Luiza Moraes/Wander Roberto/COB

Havia uma comunidade que atravessava tempos de escassez de comida, alegria e fé. Os mais velhos lamentavam a frieza dos dias. A fecundidade e a fertilidade da terra e dos ventres estavam enfraquecidas. Ali, a vida estava montada no vento moído e cabisbaixo. Ao amanhecer de um dia fortuito, Bamidele, “a esperança”, fez um anúncio. Estava prenha. Ia nascer a menina Ayoluwa. O choro do parto fertilizou os corações, o solo, as utopias. Ayoluwa “acordou todos nós”.

Aprendi esse conto com Conceição Evaristo. Percebi que Ayoluwa, uma menina negra, representa uma cria ancestral que sobrevive do eterno processo de reinvenção da sua resistência. Ela é dengo, correnteza, Odara. 

No imaginário em que as mulheres negras são associadas às “imagens de controle” (Patricia H. Collins) relacionadas a submissão, domesticidade e obscenidades, Ayoluwa rompe as narrativas sustentadas por valores definidos pelos grupos dominantes do poder. Como sujeito, temos o direito de dar o nome da nossa própria história (Bell Hooks).

Ayoluwa significa “a alegria do nosso povo”. Bia Souza, Rebeca Andrade e Rafaela Silva são aqui tipificadas como “Ayoluwas”. Aquelas que driblaram o destino traçado por uma estrutura racista e transformaram dor, insultos e prantos em ouro, prata e bronze. 

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Bia Souza, mulher negra, preta, gorda. Ela se consagra como a atleta dourada que fez da força um instrumento de triunfo. O caminho da sua consagração no judô passa por uma trilha de sucesso: prata e bronze em Budapeste (2017), prata em Tashkent (2022), bronze em Doha (2023), bronze em Santiago (2023).

Em Paris, Bia, com ouro beijando a bochecha, explode de emoção. Chorando, dedica a medalha à querida avó. Quebrou toda e qualquer versão midiática a respeito do seu estereótipo. Como atleta olímpica, modelo de disciplina e rendimento. Como mulher, apaixonada e correspondida. Como negra, primeiro lugar do pódio.

Uma mãe, seis irmãos e um sonho compartilhado. Duas horas era o tempo que Rebeca gastava no deslocamento para os treinos. Emerson, seu irmão mais velho, conseguiu uma bicicleta para transportá-la até o ginásio. A família era o seu ninho.

O apoio incondicional e a cumplicidade nas adversidades era o artifício da sua potência. No seu voo, se afastou do seu chão. Ressignificou a distância. Abraçou a equipe como uma segunda família. Superou os limites do corpo e se consagrou como a primeira ginasta brasileira a somar medalhas em todas categorias dos mundiais.

Na mala, carrega o total de 14 medalhas de ouro, 18 prata e 07 bronze. Em Paris, Rebeca Andrade corre radiante após mais uma vitória. Nessa terça (5), hasteando a bandeira brasileira em seus braços, Rebeca desbanca sua adversária, a ginasta americana Simone Biles, e conquista o ouro no solo. A ginasta brasileira, entre lágrimas, aplausos e sorrisos, é coroada mundialmente. 

O Brasil vibra!

Uma averiguação de antidoping arrancou sua medalha. A substância identificada no exame da atleta veio do contato que teve com um bebê em tratamento contra asma, dias antes da competição. Nessa situação, Rafaela Silva sofreu três golpes de alta execução: perda da medalha, suspensão de dois anos de campeonatos e uma onda severa de racismo nas redes sociais.

Gritaram Negra! Atacaram seu cabelo, seus lábios, seu corpo. Os xingamentos e as ofensas nocautearam a atleta olímpica.  Decidiu que ia desistir do judô, da vida, dos sonhos.

De mãos dadas com a família e a equipe, Rafaela reagiu, venceu a depressão e abraçou seus treinos. Em 2016, na cidade que é sua, o ouro brilhava no seu kimono. Em 2024, novamente no pódio. A medalha foi seu escudo para racismo. Gritaram Negra!, reagiu: “Negra Sou. Bendigo aos céus porque quis Deus que negro azeviche fosse minha cor. E já compreendi” (Victoria Santa Cruz).

Como todo sonho que se preze, as Ayoluwas também foram paridas pela esperança. Diante das turbulências, esses corpos comportam marés bravias (Jarid Arraes). Negociam, cotidianamente, as contradições que exigem de sim. Por vezes, inertes por fora e infláveis por dentro. 

Apesar da imagem que a sociedade lhe empurra, elas ampliam a sua dimensão de identidade e se autodefinem por meio do empoderamento. Irreprimível. Desdobrável. Únicas. Essas atletas olímpicas são vozes que ecoam liberdade.

 

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