'No retrato que me faço': pessoas em situação de rua são retratadas por mestre Julio Santos

“Bater um retrato”, mais do que construir uma lembrança, significa um ato de existência

Foto: Mestre Julio Santos

O santuário é forrado por um tecido estampado com uma sobreposição de uma renda envelhecida. Uma lamparina, a miniatura de uma bíblia aberta no livro de Salmos e santos de gesso: São José, Nossa Senhora e Padre Cícero. Ao lado do altar, há um vaso da planta “comigo-ninguém-pode” e um pote de barro com canecas de alumínio.

Acima do lugar sagrado, suspensos na parede de reboco, entre rosas de plásticos, imagens santificadas, terços e calendários, estão os retratos de família. Em molduras de madeira adornada e vidro, destacam-se as fotopinturas do casal. Com expressões sérias, ternos polidos, vestidos pomposos e joias brilhantes, esse quadro existe como quem informa ao visitante daquele lar: — Ei, “aqui morava um rei” (Ariano Suassuna).

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A fotografia não se limita a uma ingênua ilustração, é, antes de tudo, uma produção pessoal simbólica. Ela é a representação de uma cultura codificada e carrega em suas formas, traços, cores e linhas a capacidade de descrever e projetar uma dada realidade. Tem o poder de apresentar versões e determinar significados. São “imagens que pensam.” (Etienne Samain).

A fotografia surge para uso dos nobres, controle da narrativa, estabelecimento da imagem que o mundo deve projetar. A fotopintura, presente nas casas dos sertões nordestinos, não à toa fica em lugar de destaque. Aquela imagem era um pedaço da história daquela gente.

Mestre da fotopintura Julio Santos posa segurando uma moldura que contorna o rosto
Legenda: Referência no Brasil, o mestre da fotopintura Julio Santos orgulha-se se ter imagens suas penduradas em lugares de honra, como em casas, museus e galerias
Foto: Divulgação

“Bater um retrato”, mais do que construir uma lembrança, significa um ato de existência. Neste momento de imaginação artística, a fotopintura agrega uma posição de visibilidade para essa parte da população que padece de um extenuante processo de marginalização. A fotopintura é a materialização de um olhar e um registro histórico.

Mas quem tem o direito à memória? Qual história está sendo contada por meios desses dispositivos? Quem a sociedade invisibiliza?

De acordo com o censo realizado pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o número de pessoas em situação de rua excede 300 mil pessoas. Os principais motivos apontados para essa condição foram: problemas familiares (44%), seguido de desemprego (39%) e de alcoolismo e/ou uso de drogas (29%).

A maior parte das pessoas em situação de rua não vive com suas famílias na rua (92%) e nunca ou quase nunca tem contato com parentes fora da condição de rua (61%). As pessoas em situação de rua cadastradas no país são majoritariamente do sexo masculino (87%), adultas (55% tem entre 30 e 49 anos) e negras (68% sendo 51% pardas e 17% pretas).

Montagem com três fotopinturas
Foto: Mestre Julio Santos

Fortaleza é a quinta cidade com maior população de rua do país. De acordo com o Censo Municipal da População em Situação de Rua, a maioria dos moradores de rua está concentrada na Regional 12 (Centro, Moura Brasil e Praia de Iracema). Mais da metade tem raros ou não tem mais contato com suas famílias.

Quase todos (86,8%) foram para as ruas ao perder a condição de ter uma moradia convencional. Quase todas essas pessoas desejam deixar de viver em situação de rua (94,3%). Diante disso, qual recorte da população continua sendo despercebido?

Entendendo a cultura como um direito fundamental, o Núcleo de Articulação Territorial (NAT) do Centro Dragão do Mar desenvolve uma rede de cuidado para a população em situação de rua que vai desde a mediação na oferta de atendimentos sociais a experiências artísticas. Recentemente, uma parceria entre o NAT e o mestre da fotopintura Julio Santos levou a arte para as ruas de Fortaleza.

Montagem com três fotopinturas
Foto: Mestre Julio Santos

Nesta terça-feira (20), véspera do Dia Nacional da Luta da População em Situação de Rua e também do Dia da Fotografia, será lançada no Dragão do Mar a exposição “Reinvenção Imagética da Identidade”. Cerca de treze pessoas em situação de rua que têm (sobre)vivido nas proximidades do centro cultural foram convidadas a participar de uma sessão fotográfica, ocasião em que relataram suas vivências e como gostariam de ser vistas.

Essa atividade tinha como mote a provocação: como você gostaria de ser retratado? O resultado dessa potente interação, fabulações cheias de vida nas fotopinturas do Mestre Julio, agora compõem a série imagética da mostra. A liberdade pode ser retratada na técnica da fotopintura.

Para Mestre Julio, “a fotopintura é aquilo que você quer ser”. Agenciados pelos desejos, os fotografados sugeriram que seus retratos adotassem adereços, vestimentas, indumentárias, cenários inerentes à identidade que se assemelha a rainhas, militares, jogadores de futebol, personagens históricos e operários.

Montagem com três fotopinturas
Foto: Mestre Julio Santos

A imagem como discurso sobre o mundo compõe o imaginário e atribui uma narrativa nas quais estão embasadas em julgamentos e emoções específicas do fotografado. Nesse momento de soberania criativa, para o sonho não cabe ter o chão como morada. O espírito arredio quer se desatar, voejar e esticar horizontes.

Em frações de segundo, faz da nuvem seu lugar de invenção. Repensa formas, matizes, lógica e composição, se preciso for. A prática artística é onde germinam os lampejos da inventividade e a fotopintura é um canal de legitimação do olhar, do discurso, da memória e do desejo dos “invisibilizados” deste solo.

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