O santuário é forrado por um tecido estampado com uma sobreposição de uma renda envelhecida. Uma lamparina, a miniatura de uma bíblia aberta no livro de Salmos e santos de gesso: São José, Nossa Senhora e Padre Cícero. Ao lado do altar, há um vaso da planta “comigo-ninguém-pode” e um pote de barro com canecas de alumínio.
Acima do lugar sagrado, suspensos na parede de reboco, entre rosas de plásticos, imagens santificadas, terços e calendários, estão os retratos de família. Em molduras de madeira adornada e vidro, destacam-se as fotopinturas do casal. Com expressões sérias, ternos polidos, vestidos pomposos e joias brilhantes, esse quadro existe como quem informa ao visitante daquele lar: — Ei, “aqui morava um rei” (Ariano Suassuna).
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A fotografia não se limita a uma ingênua ilustração, é, antes de tudo, uma produção pessoal simbólica. Ela é a representação de uma cultura codificada e carrega em suas formas, traços, cores e linhas a capacidade de descrever e projetar uma dada realidade. Tem o poder de apresentar versões e determinar significados. São “imagens que pensam.” (Etienne Samain).
A fotografia surge para uso dos nobres, controle da narrativa, estabelecimento da imagem que o mundo deve projetar. A fotopintura, presente nas casas dos sertões nordestinos, não à toa fica em lugar de destaque. Aquela imagem era um pedaço da história daquela gente.
“Bater um retrato”, mais do que construir uma lembrança, significa um ato de existência. Neste momento de imaginação artística, a fotopintura agrega uma posição de visibilidade para essa parte da população que padece de um extenuante processo de marginalização. A fotopintura é a materialização de um olhar e um registro histórico.
Mas quem tem o direito à memória? Qual história está sendo contada por meios desses dispositivos? Quem a sociedade invisibiliza?
De acordo com o censo realizado pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o número de pessoas em situação de rua excede 300 mil pessoas. Os principais motivos apontados para essa condição foram: problemas familiares (44%), seguido de desemprego (39%) e de alcoolismo e/ou uso de drogas (29%).
A maior parte das pessoas em situação de rua não vive com suas famílias na rua (92%) e nunca ou quase nunca tem contato com parentes fora da condição de rua (61%). As pessoas em situação de rua cadastradas no país são majoritariamente do sexo masculino (87%), adultas (55% tem entre 30 e 49 anos) e negras (68% sendo 51% pardas e 17% pretas).
Fortaleza é a quinta cidade com maior população de rua do país. De acordo com o Censo Municipal da População em Situação de Rua, a maioria dos moradores de rua está concentrada na Regional 12 (Centro, Moura Brasil e Praia de Iracema). Mais da metade tem raros ou não tem mais contato com suas famílias.
Quase todos (86,8%) foram para as ruas ao perder a condição de ter uma moradia convencional. Quase todas essas pessoas desejam deixar de viver em situação de rua (94,3%). Diante disso, qual recorte da população continua sendo despercebido?
Entendendo a cultura como um direito fundamental, o Núcleo de Articulação Territorial (NAT) do Centro Dragão do Mar desenvolve uma rede de cuidado para a população em situação de rua que vai desde a mediação na oferta de atendimentos sociais a experiências artísticas. Recentemente, uma parceria entre o NAT e o mestre da fotopintura Julio Santos levou a arte para as ruas de Fortaleza.
Nesta terça-feira (20), véspera do Dia Nacional da Luta da População em Situação de Rua e também do Dia da Fotografia, será lançada no Dragão do Mar a exposição “Reinvenção Imagética da Identidade”. Cerca de treze pessoas em situação de rua que têm (sobre)vivido nas proximidades do centro cultural foram convidadas a participar de uma sessão fotográfica, ocasião em que relataram suas vivências e como gostariam de ser vistas.
Essa atividade tinha como mote a provocação: como você gostaria de ser retratado? O resultado dessa potente interação, fabulações cheias de vida nas fotopinturas do Mestre Julio, agora compõem a série imagética da mostra. A liberdade pode ser retratada na técnica da fotopintura.
Para Mestre Julio, “a fotopintura é aquilo que você quer ser”. Agenciados pelos desejos, os fotografados sugeriram que seus retratos adotassem adereços, vestimentas, indumentárias, cenários inerentes à identidade que se assemelha a rainhas, militares, jogadores de futebol, personagens históricos e operários.
A imagem como discurso sobre o mundo compõe o imaginário e atribui uma narrativa nas quais estão embasadas em julgamentos e emoções específicas do fotografado. Nesse momento de soberania criativa, para o sonho não cabe ter o chão como morada. O espírito arredio quer se desatar, voejar e esticar horizontes.
Em frações de segundo, faz da nuvem seu lugar de invenção. Repensa formas, matizes, lógica e composição, se preciso for. A prática artística é onde germinam os lampejos da inventividade e a fotopintura é um canal de legitimação do olhar, do discurso, da memória e do desejo dos “invisibilizados” deste solo.