Quem perde imóvel financiado por atraso não poderá usar CDC para receber parcelas já pagas, diz STJ

Conforme decisão da 2ª Seção do Tribunal, não vale a aplicação do Código de Defesa do Consumidor para a devolução das prestações quitadas anteriormente

Foto: Fabiane de Paula

Quem financiou um imóvel e precisa entregá-lo à empresa de financiamento por falta de pagamento não poderá mais contar com o dispositivo do Código de Defesa do Consumidor (CDC) que possibilitava a devolução de parcelas pagas pelo devedor. 

Esse foi o entendimento da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, nesta quarta-feira (26) definiu tese sob o rito de recursos especiais repetitivos (Tema 1.095) afastando a aplicabilidade do CDC na hipótese de resolução de contrato de compra e venda de imóvel com cláusula de alienação fiduciária em garantia. 

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Conforme a orientação do STJ, a resolução do contrato em caso de devedor inadimplente deve seguir o previsto na Lei 9.514/1997, mais específica. A votação unânime seguiu a posição do ministro relator, Marco Buzzi. 

O julgamento estabeleceu o seguinte enunciado: 

Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrada, a resolução do pacto na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituída em mora, deverá observar a forma prevista na Lei 9.514/1997, por se tratar de legislação especifica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.
Enunciado do STJ
 

Conflito de leis 

A advogada Rafaela Ferraro, especialista e mestre em Direito Imobiliário, destaca que a decisão se deu a partir de dois casos concretos que pediam a restituição de quantias pagas em contratos de compra e venda a crédito com garantia fiduciária de bens imóveis, que, em razão de inadimplemento dos devedores fiduciantes foram levados a leilão.  

Segundo ela, os processos questionavam os termos da existência simultânea de duas normas jurídicas relacionadas ao tema:  

  • o artigo 53 do CDC, que considera nula a cláusula de promessa de venda e de alienação fiduciária que preveja a perda total das quantias pagas, em caso de resolução por inadimplemento do devedor e; 
  • o artigo 27 da Lei nº 9.514/1997, que, em caso de execução do crédito fiduciário, obriga o credor fiduciário a entregar ao devedor fiduciante o saldo, se houver, do produto do leilão do imóvel.   

“Essas normas conflitantes geravam debates nos tribunais, ocasionando decisões discordantes, além de um potencial de multiplicidade de demandas idênticas. Não havia uma resposta uníssona quanto ao tema, tendo em vista a vastidão de incorporadoras que detém um grande peso econômico no mercado da construção civil, versus a hipossuficiência do consumidor especialmente atingindo pela superveniência de fatos”, explica a advogada. 

Para sanar o conflito, o STJ determinou a suspensão da tramitação, em todo o País, de processos que tratavam da mesma questão, conforme o artigo 1.037, inciso II, do Código de Processo Civil (CPC). 

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Tribunais e juízes tinham decisões contraditórias

Rafaela Ferraro ressalta explica ainda que as decisões judiciais até então eram conflitantes. Conforme a advogada, a jurisprudência era dividida, “tendo em vista que os contratos de alienação fiduciária, regidos pela Lei 9.514/1997, aplicam o trâmite de lei própria” e não o CDC. 

“No caso em questão, o tribunal de origem desprezou o procedimento especial definido pelos artigos 26 e 27 da Lei nº 9.514/1997 e aplicou em seu lugar o critério de liquidação decorrente de resolução de promessa de venda, definido pela Súmula 543 do STJ, julgando procedentes os pedidos e determinando a restituição aos devedores fiduciantes de 90% das quantias pagas, desprezando o fato de não ter sido apurado saldo no leilão dos imóveis”, explica.  

Neste caso, de acordo com o artigo 27 da referida Lei, o comprador, devedor fiduciante, somente será restituído pelos valores até então pagos se o valor do lance no leilão for superior ao valor da dívida. E, por dívida, a Lei considera o saldo devedor da operação de alienação fiduciária na data do leilão, nesse incluídos os juros convencionais e penalidades, além das despesas, prêmios de seguro, encargos legais, inclusive tributos e taxas condominiais"
Rafaela Ferraro
Advogada, especialista e mestre em Direito Imobiliário

Por outro lado, ensina a advogada, havia também juízes que aplicavam o artigo 53 do CDC. O dispositivo estabelece que, em contratos de compra e venda com alienação fiduciária, são nulas as cláusulas que estabelecem a perda total das prestações pagas em benefício do credor que pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado em razão do inadimplemento do comprador.  

De acordo ela, os magistrados que decidiam os casos conforme o CDC consideraram a “presunção da situação de impotência ou de inferioridade  do adquirente na relação de consumo, ou seja, está em desvantagem em relação ao fornecedor, que no caso seria a própria instituição bancária”. 

Ferraro afirma ainda que o julgamento servirá para “basilar os precedentes dos casos semelhantes, e poderá evitar decisões divergentes nas instâncias de origem e o envio desnecessário de recursos aos tribunais”.  

Essa definição é positiva, segundo a especialista em Direito Imobiliário, “se vislumbrarmos a economia processual e celeridade dos julgamentos. Com aplicação do REsp repetitivo, os ministros facilitam a solução de demandas que se repetem nos tribunais brasileiros”, defende. 

Impacto para o comprador 

Contudo, para o consumidor, a decisão pode representar pode ser uma afronta ao CDC, “uma vez que por mais que não esteja se questionando eventual ilegalidade do procedimento de execução extrajudicial do bem imóvel garantido por alienação fiduciária, mas, tão somente, a forma de devolução dos valores financeiros pagos pelos devedores ao credor fiduciário durante a pactuação contratual, atingirá em cheio os bolsos dos que sonham com o imóvel próprio”. 

Segurança jurídica 

“Podemos afirmar que diante de toda expectativa mercadológica, a  superação da controvérsia do Tema 1.095/STJ mostra-se necessária para além de tudo, assegurar a previsibilidade jurídica das causas aos cidadãos e aos agentes econômicos, garantindo  a confiança legítima que seus direitos e suas obrigações serão exigíveis tal como previstos nas normas legais que os disciplinam, tendo em vista interpretação da legislação no tempo e sua eficácia”, observa. 

Recurso especial (REsp) 

Rafaela Ferraro ressalta ainda a importância do Recurso especial (REsp), um tipo de mecanismo de defesa no Direito “dirigido ao STJ para contestar possível má aplicação da lei federal por um tribunal de segundo grau. Assim, o REsp serve para que o STJ uniformize a interpretação da legislação federal em todo o País. No caso de um RESP repetitivo, é um recurso escolhido para ser julgado como representativo de uma questão jurídica presente em várias outras causas, para que assim a tese fixada pelo tribunal seja aplicada na solução dos casos semelhantes em todo o País”, reforça.