Uma das primeiras lições que se aprendem na faculdade de Direito é de que uma decisão sobre um processo, após esgotados todos os recursos, é definitiva. É o chamado transito em julgado, ou "coisa julgada". O princípio é necessário para que haja segurança jurídica.
Isso é particularmente importante para o investimento no País, gerando emprego e renda. Contudo, o Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão plenária, entendeu por unanimidade, na quarta-feira (8), que uma decisão definitiva, a chamada “coisa julgada”, sobre tributos recolhidos continuadamente, perde seus efeitos caso a Corte se pronuncie em sentido contrário.
A corte defende que, de acordo com a legislação e a jurisprudência, uma decisão, mesmo transitada em julgado, produz os seus efeitos enquanto perdurar o quadro fático e jurídico que a justificou. Havendo alteração, os efeitos da decisão anterior podem deixar de se produzir.
Insegurança jurídica
Logo após o fim do julgamento, juristas começaram a criticar a decisão, por significar uma insegurança jurídica para questões de ordem tributária. A forte reação fez com que o próprio STF se manifestasse, justificando a sua posição relativa aos dois recursos extraordinários - RE 955227 (Tema 885) e RE 949297 (Tema 881) analisados pelo colegiado, sob relatoria dos ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin.
Barroso, que conduziu a tese vencedora no julgamento, dargumentou que não se pode falar em prejuízo às empresas, uma vez que, no caso, o STF validou o imposto em 2007 e, desde então, as empresas deveriam ter pago ou, no mínimo, provisionado recursos para esta finalidade.
Para rebater as críticas, o STF divulgou um vídeo com Barroso defendendo a posição do Tribunal:
Segundo o ministro, se há insegurança jurídica, ela foi causada pelos contribuintes que tiveram as decisões transitadas em julgado. "A insegurança jurídica não foi criada pela decisão do Supremo. A insegurança jurídica foi criada pela decisão de, mesmo depois da orientação do Supremo de que o tributo era devido, continuar a não pagá-lo ou a não provisionar. (...) A partir do momento em que o Supremo diz que o tributo é devido, quem não pagou ou provisionou fez uma aposta", afirmou.
Luís Roberto Barroso ainda comparou o não pagamento dos tributos amparada pela decisão transitada em julgado como uma aposta em cassino.
Se você for num cassino e fizer uma aposta, você está num quadro de insegurança jurídica e pode ganhar ou perder. De modo que a partir do momento em que o Supremo diz que o tributo é devido, quem não pagou ou provisionou fez uma aposta"
Risco para o investidor e desvalorização de 1ª e 2ª instâncias
Os argumentos não convenceram os juristas, que temem o impacto da decisão na economia. "Com todo o respeito ao STF, a gente entende que isso, sim, fere o direito adquirido. Coloca em risco o investidor estrangeiro, que espera um poder judiciário não apenas justo, não é isso que se discute, mas que não ande na corda bamba, onde você tem uma sentença transitada em julgado e na matéria tributária isso pode ser revertido". A afirmação é de Hamilton Sobreira, presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB-CE.
Da forma como o STF decidiu, observa Sobreira, a decisão do Supremo desvaloriza as primeira e segunda instâncias do Poder Judiciário. Desta forma, opina, será melhor entrar com as ações diretamente no Supremo, pois "essa insegurança jurídica está caracterizada, com o devido respeito, diante da decisão".
Como você explica isso para o contribuinte, que ele ganha uma causa, mas não vai levar e, principalmente, se esse contribuinte tiver um investidor estrangeiro atuando. Em todo canto do mundo a decisão judicial não pode dar margem a modificação após o trânsito em julgado"
Hamilton Sobreira também alerta que este "é um precedente que pode abrir para as outras áreas do Direito".
Fux diz que decisão "destruiu a coisa julgada"
Apesar de ter votado com seus pares, o ministro do STF Luiz Fux criticou, nesta sexta-feira (10), a decisão do colegiado que, segundo ele, "destruiu a coisa julgada, que criou a maior surpresa fiscal para os contribuintes, um risco sistêmico absurdo". A declaração ocorreu durante evento do Sindicato das Empresas de Contabilidade e Assessoramento de São Paulo (Sescon).
"Aquilo me incomodou muito, porque tive formação muito sólida, e nessa formação se dizia que na catedral do Direito está a coisa julgada, porque a coisa julgada tem compromisso com a estabilidade e a segurança social", afirmou. "Se a gente relativiza a coisa julgada, vale a segunda e não a primeira, porque não a terceira, a quarta e a quinta? E quando vamos ter segurança jurídica?", provocou.
Fux já havia criticado a não modulação dos efeitos no caso. Ou seja, quando são definidas exceções para a aplicação da decisão. Na quarta-feira, o pedido dos contribuintes nesse sentido foi rejeitada por 6 votos a 5, sendo os votos contrários à modulação de Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, André Mendonça, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Rosa Weber.
Já os ministros Edson Fachin, Nunes Marques, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski, além de Luiz Fux, entenderam que o imposto poderia ser exigido apenas após a ata de julgamento dos casos analisados ser publicada.
Eu acho belíssimas as teses tributárias, belíssimas as homenagens que se fazem, mas temos de ter em mente as consequências jurídicas da nossa decisão, os riscos sistêmicos, o abalo que se cria em relação ao risco Brasil"
Entenda a decisão do STF
Sobre quais tipos de tributos o STF se pronunciou?
A decisão que estipulou a perda de efeitos de uma sentença definitiva (transitada em julgado, sem possibilidade de recurso), caso o Supremo tome uma decisão contrária, foi unânime e vale apenas para tributos recolhidos de forma continuada, ou seja, aqueles cuja cobrança se renova periodicamente, como a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Nos casos dos tributos cobrados uma vez só, como, por exemplo, o ITBI, que incide sobre a venda de um determinado imóvel, se houver uma decisão transitada em julgado, como a relação é única, esse direito permanece, mesmo após decisão contrária do STF sobre o tema.
Conforme o ministro Barroso, o STF entendeu que no caso das relações tributárias continuadas uma decisão anterior que considere determinado tributo inconstitucional perde eficácia após decisão do STF reconhecendo sua validade. Isso faz com que a retomada do pagamento seja obrigatória, mesmo para os contribuintes que já tinham decisões definitivas de outras instâncias desobrigando o recolhimento, após a decisão do STF de 2007.
Por quê o STF reverteu nesses casos a “coisa julgada”?
O ministro salientou que a coisa julgada – o direito adquirido a partir de uma decisão judicial sem possibilidade de recursos – vale enquanto permanecerem as mesmas condições fáticas e jurídicas. No entanto, quando a Suprema Corte decide que um tributo é devido, a partir daquele momento, todos têm que pagar.
Barroso defendeu a importância de que um determinado tributo incida sobre todos os atores do mercado, caso contrário, diz ele, quem tiver obtido uma coisa julgada antiga tem uma vantagem competitiva em relação aos concorrentes, em decorrência da desigualdade tributária.
Qual foi o caso concreto decidido?
Em 1992, algumas empresas conseguiram na Justiça o direito de não pagar a CSLL, e o caso transitou em julgado em outra instância. Porém, em 2007, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 15, o STF afirmou que a contribuição era constitucional e deveria ser paga. O Supremo se pronunciou no sentido de que a partir daquela decisão, todos deveriam ter passado a pagar o tributo.
O entendimento valerá para todos os processos?
A decisão foi tomada em sede de repercussão geral. Portanto, a decisão valerá para todos os casos semelhantes que corram em outras instâncias.
Nos casos de outros tributos que venham a ser considerados constitucionais, a partir de quando as empresas terão que pagar os valores?
Pelo entendimento dos ministros, se o tributo for imposto e considerado constitucional, ele só será cobrado no ano seguinte. Se for contribuição, três meses depois da decisão.
O ministro Barroso esclareceu ainda que no caso da CSLL, por ter uma inequívoca decisão anterior do Supremo afirmando que o tributo era devido, a Corte entendeu que não deveria fazer a chamada modulação e determinou o recolhimento dos valores passados, respeitado o prazo de prescrição. Caso haja outro tributo, em situação fática ou jurídica distinta, o STF poderá decidir se haverá ou não modulação.
Tese fixada no julgamento:
- As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.
- Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.
Com informações da Secretaria de Comunicação do STF.