Times de futebol: o único amor dos homens?

A partida de futebol é um ritual de reforço da masculinidade, ao mesmo tempo em que abre para o masculino a possibilidade de vivências e emoções normalmente associadas ao feminino

Legenda: Torcida do Fortaleza na Arena Castelão
Foto: Kid Junior

Assistindo a vários vídeos feitos pela torcida do Palmeiras, nas arquibancadas do estádio Centenário, na cidade de Montevidéu, durante a final da Taça Libertadores, me chamou a atenção um dos cantos entoados pela Mancha Verde, a maior torcida organizada do time paulista, que, em um dos versos, diz: “eu canto o meu porco, meu único amor”. Isso me fez lembrar de outro canto de torcidas, que havia me chamado muita atenção, quando residi em Lisboa e fui assistir a jogos do Sporting. Nele o torcedor, claramente identificado como sendo masculino, diz: “O mundo sabe que, por teu amor eu sou doente. Farei o meu melhor, para te ver sempre na frente. Irei onde o coração me levar e sem receio farei o que puder pelo meu Sporting”. 

Fiquei a me perguntar por que os homens, normalmente tão reticentes em falar de amor, de sentimentos em público, não têm pejo em confessarem seu amor pelo time do coração, em falar das loucuras que são capazes de fazer por eles (até a pé nós iremos, para o que der e vier, mas o certo é que nós estaremos, com o Grêmio, onde o Grêmio estiver, canta a terceira versão do hino do time gaúcho), de como colocam esse sentimento acima de qualquer coisa?

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Creio que um dos motivos que fazem os homens terem uma relação tão especial com o seu time (as mulheres só mais recentemente começam a ter esse mesmo tipo de relação) é justamente por ser o campo de futebol e a paixão clubística um dos poucos espaços socialmente legitimados para os homens expressarem seus sentimentos, suas paixões, suas fragilidades, aquilo que têm que duramente reprimir na vida cotidiana, para serem considerados masculinos. 

Como vimos na linda festa protagonizada pela torcida do Fortaleza, ao ver seu time classificado diretamente para a Taça Libertadores, no estádio, os homens podem se agarrar, abraçar uns aos outros, podem até beijar os outros companheiros, podem chorar de alegria ou de tristeza, podem partilhar intensas emoções, podem se desesperar, podem demonstrar fragilidade e medo. 

Como vimos na Arena do Grêmio, no final do jogo contra o Atlético Mineiro, com o time rebaixado, parecia haver uma completa inversão das hierarquias de gênero e etárias: as mulheres, namoradas, amigas tendo que consolar o homem que estava chorando desconsolado, destruído ao seu lado; as crianças, os filhos e filhas tendo que acarinhar um pai em prantos, desolado, sentado na arquibancada, incapaz de se erguer do chão.

O estádio de futebol é um espaço de homossocialidade e de homoerotismo, onde se dá, em grande medida, o próprio aprendizado da masculinidade, para muitos garotos. Para muitos meninos, é na ida ao estádio com seus pais ou é frequentando as peladas, fazendo parte de jogos de várzea, nas ruas ou nos arredores de casa que eles vão sendo iniciados nos códigos da masculinidade. Por isso, os espaços do futebol são contraditoriamente espaços de sociabilidade masculina, de erotismo masculino, mas também, espaços profundamente homofóbicos, machistas e sexistas, pois eles têm que garantir a reprodução dos códigos dominantes de sexo e gênero que definem a masculinidade hegemônica. 

A formação de um homem másculo, viril e heterossexual passaria não só pela masculização do corpo através da prática do esporte bretão, mas também por uma convivência entre homens mais velhos que repassam os conceitos e os preconceitos constituidores do próprio ser masculino. Ao ir a um estádio de futebol com o pai, o menino está aprendendo a amar o clube paterno, aprendendo a tomar o pai como modelo a ser seguido, tanto na vida esportiva, como na vida social, sendo um homem como ele é, o que inclui incorporar visões negativas sobre o feminino e a homossexualidade, imagens que vão ajudá-lo a se afastar dessas realidades e vão legitimar o seu querer ser masculino.

Mas contraditoriamente, por ser um lugar de encontro de corpos, muitas vezes com partes significativas à mostra, dado a vestimenta mais informal, os espaços dedicados ao futebol são espaços homoeróticos, onde os homens podem partilhar paixões e sentimentos, fazer brincadeiras e gestos, falar de assuntos, usar palavreados que são inibidos de fazer em casa, na frente de mulheres ou mesmo em seu lugar de trabalho. 

Quem já frequentou estádios sabe como os homens, na brincadeira, se tocam em vários lugares, como fazem observações sobre os traseiros ou outras partes do corpo do outro, como fazem insinuações com conteúdo sexual para seus amigos, como revelam segredos sobre práticas de outros amigos. Até pelo uso de álcool e, às vezes, de drogas, os homens ficam mais soltos e liberados em seus comportamentos, em relação à dura repressão que sofrem todo dia, em casa, nas ruas, no trabalho.

O que mais me impressionava ao frequentar os estádios em Portugal era que aqueles homens reprimidos, taciturnos, que via todo dia, em todos os lugares, homens capazes de te pedir desculpas somente porque chamou o elevador na mesma hora que você e ele parou no andar dele lhe transportando, tornava-se um boquirroto, um pornográfico, que não parava de xingar nomes feios o jogo inteiro.

O estádio é também um lugar de liberação, de desafogo das paixões tristes: neles os homens podem por para fora seus ressentimentos, suas raivas, suas frustrações, seus desenganos, daí ser espaços, muitas vezes, de violência verbal e física, da expressão aberta de racismo, xenofobia, misoginia, homofobia, de ódios de classe, de rivalidades regionais e nacionais intensas. 

A explosão do hooliganismo na Inglaterra, que culminou com a Tragédia de Hillsborough, quando noventa e sete torcedores do Liverpool morreram pisoteados, durante uma partida contra o Nottingham Forest, pela Taça da Inglaterra, em 1989, se deu, justamente, quando o governo neoliberal de Margareth Thatcher praticamente desmontou o Estado de bem-estar social, levou milhares de trabalhadores ao desemprego, jogou toda uma geração de jovens, notadamente da periferia das grandes cidades e descendentes de migrantes, na precariedade, na incerteza e na desesperança, na falta de perspectiva de futuro. 

Os torcedores violentos, notadamente aqueles que se agrupam em torcidas organizadas, que passam a ser organizações com conotações fascistas e mafiosas, são produto do agrupamento de pessoas tomadas pela revolta, pelo ódio, pela raiva à vida e à ordem dominante, vendo no seu time e na torcida o único lugar de afeto e aceitação. O amor extremado ao se time, único amor numa vida de desamor, de falta de amor-próprio, de humilhação, pode tornar-se assassino, ao ver no torcedor do time adversário a personificação de todos os seus dissabores.

Mas, creio que grande parte da atração que o futebol exerce sobre os homens tem a ver com o fato de que o futebol é esse espaço de liberação de emoções, de sentimentos, de paixões que não podem ser demonstradas no dia a dia pelos homens. Se um homem é visto chorando em seu trabalho ou em casa, ele perderá algo em prestígio e respeitabilidade, ele será tomado como um fraco, um fracassado, um afeminado. Mas ser visto chorando, desconsolado, após uma derrota de seu time ou depois de uma vitória memorável, não afetará em nada sua imagem, até porque os outros homens que poderiam condená-lo fariam o mesmo ou acham aceitável que ocorra em dadas circunstâncias. 

Claro que há algo de muito machista nessa declaração de amor ao time, nessa fala de que o time é seu único amor, pois prefere-se amar onze homens jogando bola de que a uma mulher. É o mesmo que declarar que jamais amará uma mulher, que elas ficarão sempre em segundo plano em suas vidas, em seu coração, em seus sentimentos. E como, muitas vezes acontece, na vida real, os maridos e namorados abandonarão esposas e namoradas em nome de seu amor pelo time (o que leva muitas a se converterem, a se associarem, porque se enfrentar o rival perderão feio, amor de uma vida não se tenta substituir), desaparecerão todo dia de jogo, passando horas de camaradagem com os amigos, desfrutando da paixão comum. 

O futebol serve de veículo e justificativa para o cultivo das amizades masculinas, inclusive de relações de fundo homoerótico (para um homossexual, entender de futebol e gostar de futebol é uma ótima oportunidade para conquistar e conviver com seus parceiros), para o reforço dos valores, códigos, imagens, conceitos e preconceitos que definem o ser masculino. A partida de futebol é um ritual de reforço da masculinidade, ao mesmo tempo em que abre para o masculino a possibilidade de vivências e emoções normalmente associadas ao feminino, por isso o vínculo dos homens com seu time é muito mais profundo, muitas vezes, do que com suas parceiras e amantes. 

O seu único amor de verdade, também por ser o mais seguro, já que unilateral e incondicional, aquele em que não há perigo de traição (embora muitas vezes as derrotas e fracassos do time sejam vividos como traições a seu amor, daí a revolta, que pode se projetar sobre os jogadores, os técnicos, os dirigentes, os juízes, os jornalistas, que se tornam os traíras dessa grande paixão), aquele onde não há perigo de abandono e de morte, seu time sempre estará lá, ele sobreviverá a você (o que nem sempre é verdade), por isso é mais seguro se emocionar, se descabelar, chorar e ranger dentes por seu time, do que por qualquer outro amor.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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