O nordestino é brega?

A breguice torna-se uma qualificação que traça fronteiras e institui diferenciações entre classes sociais e, por extensão, entre espacialidades

Legenda: Esse texto eu dedico a Falcão, que descobriu a melhor maneira de lidar com essa pecha
Foto: Eugenio Goulart

Antes de mais nada, é preciso tomar cuidado com afirmações ou perguntas como essa, pois partem do pressuposto identitário de que os nordestinos formam uma unidade, são todos iguais, quando, na realidade, existem nordestinos para todos os gostos e de todas as maneiras. E se falamos de gosto ou maneiras é porque, ao nomearmos os nordestinos, ou qualquer outro personagem ou coisas, de brega, estamos fazendo uma avaliação estética e, ao mesmo tempo, uma avaliação no campo dos valores, das normas, dos códigos que regem o que seria de bom gosto, de bom tom, adequado, o que representaria a norma. 

Há controvérsias sobre a origem do termo brega, mas é certo que antes de ser utilizado para dar nome a uma estética, a uma dada sensibilidade, a padrões de gosto, notadamente no campo musical, onde nomeia um dado estilo de composições, era um termo utilizado para se referir a prostíbulos, a espaços dedicados à prática da prostituição. Teria sido a estética reinante nos lupanares, notadamente aqueles frequentados por homens de baixa renda, normalmente localizados em locais periféricos ou em ruas e becos menos movimentados dos centros das cidades (a iluminação com luzes vermelhas, as roupas escandalosas, a maquiagem carregada das putas e o uso exagerado de joias), assim como o tipo de músicas que costumavam ser aí tocadas, que teria levado a que o termo passasse a ser utilizado para nomear dada estética, dada sensibilidade e dado gosto, notadamente de caráter popular. 

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Os dicionários atribuem duas possíveis origens para o termo brega: ele seria uma corruptela da palavra esbregue, que se refere a uma coisa mau feita, inferior, ordinária, servindo também para nomear pessoas consideradas inferiores e vulgares; ou seria uma corruptela da palavra xumbrega, que é utilizada para nomear uma coisa confusa, algo que tem um aspecto ruim ou uma pessoa que, devido a embriaguez, provoca uma confusão. O pesquisador Luís Milanesi chega a associar a origem da palavra brega a uma dada rua da cidade de Salvador, a Manuel da Nóbrega, que ficaria na zona do baixo meretrício.

A associação entre nordestinidade e breguice foi assumida e se tornou uma marca identitária de artistas como o baiano Waldick Soriano, o pernambucano Reginaldo Rossi, que exibia com orgulho o título de Rei do Brega e o cearense Falcão, que assume a breguice na chave do humor e do deboche. Mas a palavra brega está longe de nomear apenas um estilo musical, ela se tornou um termo que avalia e nomeia toda uma estética, não apenas sonora, mas visual, comportamental, ela é utilizada para significar um dado estilo de vida, que se materializaria em maneiras de vestir, de se ornamentar e maquiar, de cortar e pentear os cabelos, em maneiras de morar, de decorar ambientes, nas escolhas estéticas e nos valores que perpassariam todas as atividades cotidianas. O termo brega passou a ser, assim, um conceito identitário, uma dada maneira de ser, passou a nomear uma forma de se ser sujeito: passou a existir o ser brega. Há quem se afirme brega em toda a sua existência. 

A cantora Marília Mendonça, em entrevista que concedeu ao jornalista Leo Dias, falou da identidade dela com as plateias do Norte e do Nordeste do país, uma identidade que passava pelo gênero de canção que interpretava, o brega sertanejo, mas também pela forma como se vestia e o tipo de comportamentos femininos que veiculava em suas canções, muito próximos daqueles comportamentos normalmente atribuídos, no pensamento conservador, às mulheres da vida, às mulheres populares, àquelas que não seriam mulheres honradas, mães de família, as mulheres do lar: ela cantou as amantes, as prostitutas, as mulheres da boemia, as mulheres que frequentam espaço tidos como masculinos, como o bar e bordel. Ela chegou, em uma só turnê, a fazer cento e vinte shows no Nordeste, para multidões, com grande presença feminina, mulheres que se identificavam com suas músicas e com seu estilo.

Mas porque os nordestinos são vistos como bregas? Esse termo é, claramente, marcado por uma visão hierárquica e pejorativa de classe. Ele serve para que as ditas elites e as classes médias construam discursos e práticas de distinção em relação às camadas populares.

A breguice torna-se uma qualificação que traça fronteiras e institui diferenciações entre classes sociais e, por extensão, entre espacialidades, a depender do lugar social e espacial de quem olha e emite um discurso a partir desse conceito. No próprio Nordeste há aqueles, notadamente os pertencentes as classes médias intelectualizadas, que nomeiam como sendo brega os gostos e modos populares de ser. Mas, por outro lado, as elites intelectuais do Sul e do Sudeste tendem a ver as próprias elites nordestinas como marcadas pela breguice, não apenas os pobres dessa região. 

Do mesmo modo, se o termo fosse de conhecimento das elites europeias ou norte-americanas, elas possivelmente apodariam as elites brasileiras, em geral, de elites bregas. Esse adjetivo, portanto, será utilizado para qualificar dadas pessoas ou dados espaços dependendo de quem olha e de onde se olha.

Esse termo passou a ser utilizado, a partir dos anos oitenta, do século XX, e veio substituir o termo cafona, com que os artistas que se consideravam de vanguarda e que faziam obras “com valor artístico”, desde os anos cinquenta, nomeavam aqueles que faziam uma arte, notadamente, uma música que nem era tradicional, como o samba, e nem era de vanguarda, como a MPB ou a música tropicalista. Reginaldo Rossi, por exemplo, que fez parte da Jovem Guarda, gravando rock, passou a vida gravando músicas assemelhadas ao twist norte-americano ou que remetiam ao que também se chamou, nos anos sessenta, de música de fossa (literalmente remetendo para o estar na merda).

Os nordestinos, notadamente os das camadas populares, são vistos como bregas por apreciarem canções românticas, que remetem à tradição do bolero e do samba-canção, com letras marcadas pelo drama amoroso, pelos clichês românticos, letras de fácil entendimento, usando vocabulário cotidiano e acessível, com arranjos simplificados, sem oposições, com linha melódica de fácil memorização, canções que falam de situações comuns e cotidianas, dos dramas e sofrimentos subjetivos que atingem as camadas populares (que não têm culpa de serem pouco instruídas e não terem acesso a outras formas de produção cultural que eduquem suas sensibilidades, inclusive auditivas), que colaboram para a vivência e a expressão de suas emoções e sentimentos. 

Mas não é só o gosto por cantores como Gilliard, Fernando Mendes, Amado Batista, José Augusto, Wando, que fariam dos nordestinos seres bregas (até porque esses cantores fazem sucesso em muitas outras regiões do país), eles também mostrariam sua breguice ao vestir. 

O gosto por cores fortes e pelos tecidos estampados, herança de costumes africanos, são malvistos pelos olhos colonizados e branqueados das elites. Condenados, muitas vezes, pela absoluta miséria, ao uso de roupas feitas de sacos e estopas, no máximo tingidas de preto, cinza ou marrom para as mulheres, quando os nordestinos pobres podem comprar roupas de festa, tendem a romper a monocromia de suas vidas e vestimentas. As cores e as estampas remetem, portanto, para uma sensibilidade estética que busca o sobressair, para pessoas, normalmente, invisíveis socialmente ou buscam expressar alegria e contentamento. 

Os calçados, também considerados de mau gosto, são aqueles que o poder aquisitivo pode comprar e que possam caber e se adaptar, sem sofrimento, a pés, muitas vezes, acostumados e deformados pelo uso da sandália, muitas delas rústicas e endurecidas, ou mesmo a pés que, preferencialmente, estão descalços (o andar descalço é uma das marcas deixadas pela escravidão, daí porque subir no salto, no Brasil, é uma atitude de classe e de poder).

O exagero no uso de adereços e de maquiagem está ligado ao próprio significado que a escravidão deu para o uso de joias e balangandãs, marcas de status no interior dos próprios escravizados, a separar escravizados domésticos e do eito, as escravizadas preferidas do senhor e da sinhá e aquelas desprezadas. Portar joias, pulseiras, colares, relógios é também uma marca de pertencimento étnico ou de destaque econômico. 

De nossos indígenas, as camadas populares herdaram o gosto pela pintura facial, notadamente o uso do ruge e do carmim, do pós-de-arroz, a dar alguma aparência de saúde a rostos pálidos e macerados pela fome ou a disfarçar a negritude (uma das motivações da preferência pelo se vestir de branco entre os negros, pois ela também tem origem nas religiões de matriz africana). A ideia de que dadas formas de ser, de vestir, de se comportar (de forma considerada vulgar, ordinária, espalhafatosa, sem modos, exibida, incomoda, sem modos, fora de lugar), a ideia de que dadas preferências estéticas e musicais, são de mau gosto, são inferiores, subalternas, não têm caráter artístico (precisaria definir o que seria isso), são sempre fruto de quem olha e de onde se olha. 

O nordestino seria brega porque não é hegemônico no país, porque ocupa, no imaginário nacional, o lugar do subalterno, do inferior, inclusive do subdesenvolvido, do pobre, do trabalhador braçal, do retirante, do imigrante, o lugar da “gentinha”, do “camumbembe”, o lugar do folclórico e do retardatário no tempo e em relação ao moderno.

Esse texto eu dedico a Falcão, que descobriu a melhor maneira de lidar com essa pecha que rebaixa e caricatura de forma preconceituosa todas as variadas formas de ser nordestino: assumindo esse lugar para mostrar o quão risível ele pode ser, fazendo do deboche uma maneira de relativizar essa identidade pejorativa, embora, infelizmente, como tudo é ambíguo no mundo dos sentidos, sua figura e suas performances podem acabar, também , por reforçar essa associação entre nordestinidade e breguice.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

 



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