Réquiem para Dom e Bruno

Legenda: "Dom e Bruno foram vítimas da apologia ao armamento, do incentivo a atividades milicianas, em que se resolvem conflitos através da ameaça, da chantagem e da morte"
Foto: Evaristo Sá/AFP

Não foram apenas as mãos assassinas de Amarildo e Oseney da Costa de Oliveira, de Jeferson da Silva Lima, as responsáveis por suas mortes. Pelo trucidamento a tiros, pelo esquartejamento, queima e enterramento de seus corpos. Muitos são os responsáveis pelo hediondo crime contra o jornalista britânico Dom Philips e o indigenista brasileiro Bruno Pereira.

Ninguém acredita que três pescadores, dedicados à pesca ilegal, três homens pobres, três ribeirinhos, sejam os idealizadores de tal monstruosidade. Eles foram os frios e cruéis perpetradores do ato, mas quem os contratou, quem lhes prometeu respaldo e recompensa?

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No vale do rio Javari, uma das áreas mais remotas do Brasil, a pesca ilegal é apenas uma das várias atividades criminosas que se apresentam conectadas, formando uma verdadeira rede mafiosa, que gera muitos lucros e são controladas por grandes empresários e empresas, muitas delas localizadas fora da região: caça e garimpo ilegal, desmatamento, contrabando, tráfico de drogas, exploração e comercialização ilegal de ouro, trabalho análogo a escravo, etc.

Essas atividades ilícitas dão origem não apenas a fortunas, mas a poder político. Muitas das lideranças políticas locais têm ligações com essas atividades ilegais e recebem financiamento, quando das campanhas eleitorais, dessas atividades.

O crime está no poder ou aspira ao poder em várias instâncias da administração pública. A proteção, a vista grossa, a colaboração das instâncias de poder local são fundamentais para a continuidade das atividades delitivas.

Numa das áreas com maior presença militar da região, pois faz fronteira com dois países (Colômbia e Peru), onde se encontram uma delegacia da Polícia Civil, uma delegacia da Polícia Federal, um batalhão da Polícia Militar, uma unidade do Corpo de Bombeiros, um efetivo da Força Nacional de Segurança, um Destacamento de Controle do Espaço Aéreo, um batalhão de fronteira do Exército, uma capitania dos portos da Marinha, todas essas atividades criminosas acontecem à luz do dia, como as barraquinhas de comércio de ouro extraído ilegalmente, que podem ser encontradas nas ruas principais das cidades da região. Fica claro que sem a conivência ou a leniência de membros dessas instituições, motivada pela corrupção, essas atividades não poderiam acontecer, pelo menos no volume em que ocorrem.

Dom e Bruno quedaram marcados para morrer por virem denunciando essas atividades criminosas, por virem combatendo as invasões das terras indígenas pelo crime organizado, por estarem escrevendo um livro em que tornariam público, internacionalmente, a destruição das políticas indigenistas, o assassinato de lideranças indígenas, o estupro de mulheres nas aldeias, o abandono a que os povos originários estão relegados por uma FUNAI descaracterizada, desmontada, ocupada por militares. Uma FUNAI que se tornou inimiga dos indígenas, que vem colaborando para o avanço de atividades ilegais nas terras indígenas.

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Dom e Bruno foram mortos pelo preconceito contra os povos originários, pela visão negativa dos povos indígenas, como sendo empecilhos ao avanço da “civilização branca”, o avanço do desenvolvimento, do progresso, como ocupantes de terras que deveriam ser tornadas produtivas e ter suas riquezas exploradas, como sendo ameaças a soberania nacional por se considerarem nações no interior da nação, por serem preguiçosos, atrasados, por serem restos de um passado a ser superado.

Dom e Bruno foram mortos pela ganância do capital, pela sede de lucros e riquezas trazidas pelo capitalismo, por um sistema que coloca a acumulação acima do valor da vida humana, que justifica qualquer crime desde que esse traga a oportunidade de amealhar dividendos.

Foram vítimas da ganância daqueles que querem invadir as terras indígenas, que querem, como no período colonial, limpar a terra de índios, para expandir seus negócios, legais ou ilegais. Expandirem suas fazendas de agronegócio, suas atividades de extração de madeira, de extração mineral.

Dom e Bruno foram vítimas do discurso antiambientalista, da articulação estapafúrdia entre ecologia e comunismo, a visão da defesa do meio ambiente como defesa do imobilismo e do atraso, como um obstáculo para o empreendedorismo empresarial, como se a destruição do meio ambiente não fosse cobrar, mais à frente um preço, a toda a humanidade.

Dom e Bruno foram vítimas do discurso contra os defensores dos direitos humanos, dos militantes em defesa da vida humana, tidos como defensores de bandidos, quando, como o caso mostra, enfrentam verdadeiras máfias criminosas, quando, para defenderem direitos consignados na Constituição Federal, têm que colocar cotidianamente suas vidas em risco, não contando com o respaldo que deveriam ter das autoridades constituídas, quando não vem delas a ameaça.

Bruno começou a ser assassinado desde que foi afastado da FUNAI, pelo ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, por vir fazendo seu trabalho, entrando em rota de colisão com interesses que chegaram ao poder com o atual governo federal.

Defender os interesses dos povos indígenas se tornou tarefa de alto risco num governo que incentiva e defende o garimpo em terras indígenas, que até projeto de lei nesse sentido apresentou ao Congresso Nacional; que paralisou completamente a demarcação das terras indígenas, como havia prometido em campanha; que abandonou os postos de fiscalização da FUNAI; que levou ao Supremo Tribunal Federal um questionamento do marco temporal visando paralisar definitivamente as demarcações de terras.

Dom Philips começou a ser morto pela xenofobia contra aqueles estrangeiros que defendem a preservação da floresta amazônica, que se colocam a serviço da denúncia internacional dos crimes ambientais, dos crimes contra os povos tradicionais, cometidos por empresas, empresários, máfias e autoridades de todas as extrações.

Enquanto isso a Amazônia é ocupada por missionários estrangeiros, por religiosos que participam da destruição das culturas indígenas, que colaboram, muitas vezes, com as redes criminosas que atuam na região, através da lavagem de dinheiro.

No mesmo momento em que a região se torna rota de passagem do crime organizado internacional, se afrouxa e se negligencia o sistema de controle da região, que se quer entregar a uma megamilionário americano.

Dom e Bruno foram vítimas da apologia ao armamento, do incentivo a atividades milicianas, em que se resolvem conflitos através da ameaça, da chantagem e da morte. Eles são vítimas da apologia a morte, da espetacularização da violência, do incentivo a que se matem e se eliminem inimigos e adversários.

Na República da arminha não é de se espantar que se use espingardas de caça para eliminar pessoas consideradas incomodas aos negócios. Na República da apologia à tortura, da homenagem a torturadores, do cultivo do ódio, não é surpresa o esquartejamento e a incineração dos corpos de dois seres humanos cujo único crime foi defender a vida, os mais fracos, os ameaçados.

Como soe acontecer, no Brasil dos tempos que correm, as vítimas são acusadas de ser responsáveis por sua própria morte. Segundo o presidente da República, que fez toda a sua campanha brandindo o discurso da segurança, que prometeu acabar com o crime, os dois profissionais, que estavam ali a trabalho, que deveriam ter suas vidas protegidas pelo Estado que ele governa, teriam ido fazer uma excursão (como ele costuma fazer em motos e jet skis), teriam sido imprudentes, pois eles não eram bem vistos, nem bem quistos e resolveram passear por uma zona deserta e perigosa.

Dom e Bruno foram mortos por uma parte da grande mídia brasileira, que normaliza o fascismo; que o veicula todos os dias em programas em que se discursa contra os direitos humanos; que foi capaz de dizer que em 2018 faríamos, no segundo turno, uma escolha difícil; que abrem espaço para que o mandatário da nação, após publicar uma nota sem citar os nomes das vítimas, dê entrevista culpando-os por seu próprio assassinato, sem questioná-lo ao vivo, sobre a demora em iniciar as buscas e a vergonhosa omissão da participação das entidades indígenas na operação de resgates dos corpos (monta-se uma mesa composta de brancos para uma entrevista coletiva e exclui-se qualquer representante da UNIVAJA), sobre as hostis declarações do presidente da FUNAI contra as vítimas.

Mãos assassinas fizeram a execução, mas o assassinato de Dom e Bruno tem muitos responsáveis. Agora a Polícia Federal apressa-se a dizer que o crime não teve mandantes. Dá mesmo para acreditar nisso? Será que teremos mais um crime em que os mandantes nunca serão identificados, como acontece no caso do assassinato de Marielle e Anderson?

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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