Tal como a Alemanha, em julho de 1932, o Brasil, em novembro de 2018, decidiu, pelo voto popular, levar o fascismo ao poder de Estado. Essa foi uma decisão gravíssima que, em pouco mais de três anos, vem deixando um rastro de destruição das instituições democráticas, do Estado de direito, da prevalência de valores republicanos e dos direitos humanos fundamentais. Assim como aconteceu no país europeu, o fascismo ascendeu ao poder com o apoio maciço da classe empresarial, de setores reacionários das classes médias e de parte significativa das camadas populares, ludibriadas pela intensa campanha antipetista levada a efeito pelos grandes grupos de comunicação do país. Antes de escalar o poder Executivo, o fascismo já se apoderara de parcela do poder Judiciário, notadamente com o método Lava Jato de fazer justiça.
Com a chegada do fascismo ao Executivo, com membros do governo exibindo símbolos nazistas e do suprematismo branco, em pleno Congresso Nacional, com um Ministro da Cultura imitando discurso de Joseph Goebbels, ministro da propaganda hitlerista, era de se esperar o crescimento, no interior da própria sociedade, de grupos violentos e de extrema direita. A cultura da violência, da agressão, da intolerância, característica do fascismo vem se explicitando desde a campanha eleitoral, onde o uso da ameaça, da intimidação, da difamação, da calúnia, da mentira foi uma constante. O símbolo da campanha bolsonarista foi uma arminha feita com as mãos. Uma vez no poder, Bolsonaro tratou, com a conivência de parte do Congresso Nacional, de instalar um verdadeiro culto às armas, de promover o armamento da população (evidentemente daqueles que têm condições de adquirir uma arma de fogo), além de continuar a fazer a apologia da tortura, apoiar as chacinas cometidas por policiais e desqualificar os discursos e práticas em torno dos direitos humanos e da promoção da paz.
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Depois de anos de cultivo por parte de programas policiais e religiosos, radiofônicos e televisivos, a cultura do fascismo alcançou legitimidade social a ponto de serem naturalizados o comportamento e as práticas de Bolsonaro e seus seguidores, que nunca esconderam seu vezo autoritário e anti-humanista. O ovo da serpente foi sendo chocado à medida que setores da sociedade iam tendo seus privilégios de classe, de raça, de gênero, questionados pelos movimentos sociais e pelas políticas públicas adotadas pelos governos de centro-esquerda que se sucederam no país, nas últimas décadas. O ódio e o preconceito contra os pobres, o racismo estrutural, o machismo, a homofobia, a transfobia levaram a que muitos fossem aderindo ao fascismo, em suas expressões mais cotidianas. As subjetividades fascistoides foram proliferando no país à medida que as ainda superficiais mudanças e transformações sociais foram gerando ressentimento, descontentamento, raiva, insegurança e incerteza. Essas subjetividades estavam disponíveis para recepcionarem os discursos de ódio, para assimilarem a desinformação e a propaganda ignorante e obscurantista, levadas a efeito pelas redes sociais e pelos grandes grupos de mídia no país, que são responsáveis diretos pela situação que estamos vivendo.
A ascensão do fascismo ao poder de Estado foi reivindicada e apoiada com entusiasmo por aquelas instituições que, no interior do próprio Estado, já expressavam uma cultura fascista, que foi desenvolvida nas várias oportunidades em que essa instituição brasileira viveu períodos antidemocráticos, de exceção. As ditaduras foram fundamentais para a criação das forças e órgãos de segurança no país e significaram momentos de empoderamento e de destaque das Forças Armadas. Nossas Forças Armadas foram criadas num Império escravista e a estruturação dessas instituições se deu através da reprodução, em seu interior, das hierarquias sociais e raciais presentes na sociedade em geral. O castigo físico, a tortura, a humilhação, fazem parte, desde o início, dessas instituições e daquilo que nomeiam de formação militar.
Os dois acontecimentos que tiveram grande repercussão, na semana que passou: a chacina que vitimou 23 pessoas na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro e o assassinato, antecedido por tortura, numa viatura da Polícia Rodoviária Federal, transformada em câmara de gás, de Genivaldo Jesus dos Santos, em Sergipe, mostram que a cultura do fascismo está presente em todas as nossas forças de segurança. As imagens do professor Ronaldo Bandeira, da empresa AlfaCon, ensinando como transformar viaturas em câmara de tortura, num curso preparatório para futuros policiais rodoviários, que viralizou na internet, mostra que a formação oferecida para militares e agentes de segurança, no país, são verdadeiras escolas de fascismo, de autoritarismo, de preconceito e violência.
Uma das graves omissões dos governos de centro-esquerda no país, seja em nível federal, seja em nível estadual, diz respeito à formação dos quadros das Forças Armadas e das instituições de segurança pública. Não se pode esperar que, com a formação que vem sendo dada, aliada a própria cultura fascistoide já existente nessas instituições, que tenhamos atitudes distintas dessas que vemos todos os dias. A letalidade das ações policiais no Brasil é uma das maiores do mundo. Ela cresceu cerca de 188% entre 2013 e 2019, vitimando, preferencialmente, homens (99,2%), jovens (74,3%) e negros (79,1%), segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do ano de 2020. Como podemos ver, os dados correspondem exatamente à formação racista e aporofóbica (preconceito ou ódio contra os pobres) recebida pelos policiais.
O movimento Policiais Antifascistas, surgido no interior das organizações militares, demonstra que essas instituições não são monolíticas, que não se pode generalizar qualquer crítica a todos os integrantes das corporações de segurança, mas, ao mesmo tempo, explicita o descontentamento de parte dos integrantes dessas instituições com a cultura fascista que as constitui e que é permanentemente realimentada através dos cursos de formação e das práticas e atitudes cotidianas, inclusive de muitos daqueles que ocupam cargos de comando, alguns deles indicados por governadores e presidentes ditos progressistas.
Quando o comandante em chefe das Forças Armadas e a autoridade máxima do país passa a dar aval e apoio explícito a ações e atitudes envolvendo tortura, assassinato em massa, demonstra desrespeito e preconceito em relação a negros, homossexuais, mulheres, indígenas e pessoas idosas, cria uma clima de permissividade que faz com que os grupos mais fascistas dessas instituições se sintam legitimados e apoiados, até mesmo estimulados a seguirem uma política de extermínio daqueles julgados como bandidos, vagabundos, somente por ser “crioulos” ou “feios”, por viverem em favelas e comunidades, por serem pobres e pretos.
O bárbaro assassinato de Genivaldo Jesus dos Santos, em plena luz do dia, diante de testemunhas e do apelo desesperado de pessoas que alertavam para sua morte, além de explicitar a crueldade daqueles que o mataram, deixou claro que toda a formação das forças de segurança no Brasil, a produção da subjetividade dos agentes de segurança tem que ser totalmente modificada. Ela deve começar por uma rigorosa seleção dos candidatos, feitas com a participação de profissionais da área da psicologia para excluir, de saída, pessoas com formação subjetiva tendente à violência, à crueldade, ao autoritarismo, à falta de empatia, personalidades que costumam ser atraídas por essas instituições.
A formação em Direitos Humanos e Integridade, que fazia parte do currículo obrigatório das instituições militares, foi lentamente extinta, com a carga horária sendo suprimida. A associação promovida pelos discursos fascistas, inclusive dos programas televisivos, entre defesa dos direitos humanos e defesa de bandidos, ou a ausência de uma política inovadora de segurança pública por parte dos governos progressistas, com a valorização da própria vida dos policiais e agentes de segurança, com a promoção de uma cultura de direitos e de paz entre os próprios policiais, leva a facistização dessas forças de segurança, que, somada à crescente politização dessas instituições, com seus integrantes constituindo uma bancada à parte no Congresso Nacional e cada vez mais utilizando discursos e teses fascistas para se apresentarem ao eleitorado, constituem uma ameaça à própria democracia e ao Estado de direito, pois o recurso às armas e às Forças Armas sempre foi a base de todos os golpes de Estado perpetrados no Brasil, até o mais recente, de 2016, que hoje sabemos teve participação direta do chamado “partido militar” em seus bastidores, através de pressões e ameaças, inclusive ao Supremo Tribunal Federal.
Os sinais são cada vez mais preocupantes, está na hora das instituições democráticas reagirem antes que seja tarde. As instituições da democracia alemã não reagiram aos caminhões transformados em câmaras de gás, matando deficientes físicos e doentes mentais e, em poucos anos, as grandes câmaras de gás, construídas nos campos de extermínio, eram as estrelas da fábrica mortífera que trucidou seis milhões de seres humanos. Os assassinos de Genivaldo e os promotores de chacinas não podem quedar impunes sob pena da democracia e o respeito a vida humana soçobrar entre nós.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.