Por que a virilidade ganha holofotes na crise política no Brasil?
Hoje, dia 7 de setembro de 2021, em que se comemora o dia da independência do país em relação ao domínio colonial português, acordamos em sobressalto esperando o que vai ocorrer na vida política do país, nas próximas horas. Mais uma vez, nos horizontes políticos da nação surge a ameaça de rompimento com o Estado democrático de direito e a implantação de um Estado de exceção, com ameaça de invasão aos espaços que acolhem e simbolizam os demais poderes da República, que devem ser autônomos e se limitarem e fiscalizarem mutuamente.
Diante de ameaça tão funesta, causa-me espanto que as últimas semanas tenham sido gastas discutindo a forma física de um ex-presidente da República, com colunistas políticos atentos para o estado de suas coxas e de seu bilau, a sexualidade do atual ocupante do Palácio do Planalto e a traição de que teria sido vítima por parte de uma de suas ex-esposas, com direito a publicação de documento emanado do Exército onde já se alertava o capitão para a infidelidade de sua consorte, que, pelo que parece, vinha preferindo outro militar, especializado em lidar com fogo e chamas.
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Creio que, até pela simbologia que envolve o dia de hoje, é preciso discutirmos a presença desse imaginário sexual, machista e sexista na vida política brasileira. É preciso lembrar que a representação mais conhecida da cena da proclamação da independência do Brasil, o famoso quadro pintado pelo paraibano Pedro Américo, está repleta de símbolos fálicos, como o espada desembainhada por D. Pedro I e seus seguidores, os cavalos potentes a se erguer ameaçadoramente sobre duas patas, numa cena em que não se vê a presença de uma só mulher ou qualquer referência ao universo feminino. Até mesmo a figura que simboliza o povo (que, como sempre, assiste a história acontecer, mas dela não participa), é a figura de um camponês levando pela mão um touro, símbolo de virilidade e força.
Já nessa cena fundacional da nação, os corpos masculinos e militarizados se sobressaem, não deixando dúvida de por quê, periodicamente, o desejo por corpos militarizados (mesmo os corpos militantes das esquerdas) aparece no horizonte da política nacional. A associação entre poder e força, poder e virilidade, poder e masculinidade é uma constante em nosso país, a ponto de dificultar a atuação política das mulheres, levando a um enorme descompasso entre a população feminina e a sua representação no Congresso Nacional.
As mulheres que se envolvem com a atuação política são, muitas vezes, acusadas de se masculinizarem, são suspeitas de serem lesbianas, como aconteceu com a ex-presidenta Dilma Rousseff.
Os setores de esquerda, no país, ficaram em ebulição com a foto do ex-presidente Lula, sob a luz da lua, numa praia cearense, vestido com uma sunga de banho, tendo no colo a sua namorada Janja. O prazer, por vezes perverso, se estendeu até a colunistas da grande mídia brasileira, entusiasmados não só com a higidez das coxas másculas do ex-presidente, como com o volume de seu bilau.
Uma linda cena de amor, uma romântica cena de um casal de apaixonados ao luar, uma perturbadora cena, para muitos preconceituosos, de felicidade amorosa envolvendo um homem de 78 anos e uma mulher mais jovem e bonita, foi completamente reduzida a sua dimensão corpórea e sexual, tornando-se a comprovação da forma física do companheiro, de sua masculinidade ainda intocada, apesar da idade.
Como ele mesmo tratou de espalhar, ao sair da prisão, um homem, então com 74 anos, "com 30 anos de energia e 20 anos de tesão". Com a esperteza política que sempre o notabilizou, com essa fala, ele começou a construção de seu corpo como dotado ainda de força, virilidade e potência para voltar a governar o país, tendo a dose de masculinidade ainda necessária para isso.
A foto veio completar essa construção, inclusive porque o seu principal oponente vem sofrendo, nos últimos dias, uma constante desconstrução da figura de macho-alfa que o levou a presidência da República, que atraiu muitos de seus seguidores e seguidoras. Bolsonaro vem padecendo constantes golpes na figura do machão que fez questão de construir, com suas declarações machistas, misóginas, homofóbicas, de desprezo pelo feminino e o uso constante de uma simbologia fálica.
Somente Fernando Collor havia explorado tanto a mitologia do macho-alfa como Bolsonaro fez em sua campanha (contraditoriamente marcada pela ausência de seu corpo, ferido ou adoecido num hospital, pela fuga do aparecimento em debates ou embates). O seu aparecimento em rede nacional, no início da pandemia, se proclamando praticamente invulnerável ao vírus por ter histórico de atleta, logo foi desmentido por suas constantes idas ao hospital e, inclusive, com a exposição de seu corpo cheio de cicatrizes.
Daí é compreensível que seus adversários tenham comemorado como uma vitória a revelação de que ele seria gay, feita em cadeia de rádio pelo ex-presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia, e de que ele é corno, pois teria sido traído por uma de suas ex-esposas, segundo bombástico depoimento de um ex-empregado. Bolsonaro é vítima da própria retórica sexista, machista e homofóbica que o trouxe e o manteve na cena pública, deixando claro - que é o que interessa nisso tudo -, como a vida política brasileira ainda está atravessada por esse imaginário falocêntrico e heterossexista.
Fica muito mais fácil entender a ruptura que a eleição de uma mulher para a presidência da República significou, para a nossa vida política, e de porque ela teve que ser punida e retirada com um golpe machista e misógino, como o de 2016, se atentamos para esse aspecto do mundo da política no país. O que vai acontecer hoje, durante o dia, ainda não sabemos, mas que um macho ferido em sua hombridade, mesmo que seja um macho fake, como tudo que envolve o atual mandatário da nação, possa tentar dar uma demonstração de força, partindo até para a violência aberta, se não for contido ou não se conter, pois é assim que os machos costumam reagir quando se veem em situação de inferioridade e de desprestígio, é uma possibilidade.
Vi declarações nas redes sociais que são muito significativas em relação a isso que estou discutindo, ou seja, pessoas dizendo que, apesar de todo o despreparo notório para governar, apesar de todos os atentados que já cometeu contra a Constituição e as leis, apesar de todos os absurdos que já disse e que já fez, o que mais teria atingido a imagem de Bolsonaro é ser identificado como um corno, um marido traído, um homem incapaz de governar suas mulheres e sua própria casa.
Bolsonaro é vítima da própria exacerbação do uso da linguagem sexista, machista e homofóbica que ele promoveu no exercício da presidência, suas afirmações e ilações de cunho sexual é uma constante.
Lançando suspeitas permanente sobre a masculinidade de adversários como o governador João Dória (a quem chama de calcinha apertada), e o deputado Rodrigo Maia (que, além de Bolsonaro achar que merece a suspeita de ser gay, é vítima de gordofobia), ele praticamente institucionalizou esse linguajar sexista de botequim.
A masculinidade frágil que ele encarna, a masculinidade que tem que se ver às voltas com o empoderamento feminino e homossexual na sociedade, é o que faz dele um corpo, um personagem em que muitos outros homens e mulheres que partilham da vivência desse imaginário patriarcal em crise, se projetam. Nos tornamos a República de corpos masculinos decrépitos, em déficit de macheza a se agarrar a símbolos fálicos (revolveres, fuzis, berrantes, motocicletas, fardas militares, coturnos) em busca de reencontrar a virilidade perdida.
A saudade da ditadura, a demanda por um regime de força, por um regime autoritário, parte de homens e mulheres saudosos de um regime que encarne a ordem tradicional, familiar, conservadora, da qual o patriarcado é uma marca fundamental. Espero que, ano que vem, a disputa política não se reduza a um confronto de bilaus, coxas e cornos, é muita pobreza mental e política. Precisamos de muito mais para tirar o país do atoleiro em que se meteu.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.