A masculinidade fascista como revanche contra o avanço social do feminino

Legenda: Presidente foi acompanhado por centenas de motociclistas em Brasília
Foto: Marcos Corrêa/PR

São Paulo, 12 de junho de 2021, cerca de seis mil homens se dispõem a participar da “motociata” de Jesus, encabeçada pelo presidente Jair Bolsonaro. A maioria deles brancos, de classe média (condição social denunciada pelas marcas das motocicletas), muito deles militares (como o corte de cabelo e estética corporal revelava), muitos deles malhados, marombados, um verdadeiro desfile de adictos da testosterona.

Eles encarnam o perfil majoritário do bolsonarista raiz: um homem branco, heterossexual, de classe média, muitos deles cristãos e militares, homens de meia idade, com diferentes níveis de escolaridade. A pergunta fundamental a se fazer é o que motiva esses homens a aderirem ao fascismo? Por que eles se veem representados, por que eles se identificam e se projetam no líder de extrema direita? Por que o capitão desperta a paixão e o desejo desses candidatos a hipermachos?

O mito parece encarnar, para esses homens, um modelo de masculinidade com o qual eles se identificam, um modo de ser homem que parece estar ameaçado pelos avanços e conquistas sociais feitos pelas mulheres. A eleição de uma mulher presidente da República foi a explicitação dessas conquistas de espaços feitas pelo feminino, gerando insegurança, ressentimento e agressividade entre parcela dos homens, que se sentiram ameaçados em sua posição de dominação e prevalência.

É como se um dado da natureza tivesse sido alterado, como se um desígnio divino tivesse sido contrariado, se o curso normal das coisas tivesse sido modificado, gerando uma disfunção e uma teratologia. A eleição de Bolsonaro, em 2018, deu continuidade ao processo misógino e machista que levou ao impeachment sem crime de responsabilidade, ao golpe que afastou a mulher que ousou galgar um lugar que não seria para ela.

A chegada de uma mulher de esquerda ao cargo de comandante em chefe das Forças Armadas fez disparar entre os militares, cultores de um anticomunismo préhistórico e formados em modelos de masculinidade do tempo dos nossos avós, a misoginia, o medo, o rancor, a raiva, a insegurança, a inveja ressentida diante do feminino.

A militarização dos corpos, inclusive com o culto as armas, com o uso de hormônios e anabolizantes, com a malhação obsessiva, parece ser uma resposta de homens cada vez mais inseguros socialmente diante das mudanças velozes nas relações de gênero, homens cada vez mais inseguros quanto a sua própria virilidade.

Bolsonaro capturou a subjetividade de homens magoados, inclusive, com o sucesso crescente das mulheres no campo intelectual, atraindo a grande camada de homens semiletrados e semianalfabetos, de ignorantes de todas as classes sociais, que revertem sua sensação de fracasso em agressividade e reacionarismo.

O deputado que ameaçou, na tribuna da Câmara dos Deputados, estuprar uma colega, que sempre tratou da pior forma suas colegas mulheres, que sempre fez piadas machistas, de teor sexual para as jornalistas que o questionavam, que disse preferir ver um filho morto do que sabê-lo homossexual, se tornou o ídolo para homens ressentidos com a perda de legitimidade de sua maneira de viver a masculinidade, com os avanços legislativos que, cada vez mais, coíbem o exercício da violência aberta contra mulheres, homossexuais, transexuais.

Toda essa cruzada moral em defesa da família, a invenção do fantasma da “ideologia de gênero”, toda a exploração que se fez na campanha eleitoral da temática da homossexualidade, da pedofilia, com direito a kit gay e mamadeira de piroca, é a tentativa reacionária de fazer caminhar para o passado as relações de gênero, de tentar barrar as mudanças das hierarquias de poder entre homens e mulheres, entre heterossexuais, homossexuais e transexuais, infelizmente com a participação entusiasta de mulheres.

Os homens que gravitam em torno de Bolsonaro, e ele próprio, encarnam uma masculinidade insegura, frágil, uma virilidade e uma heterossexualidade duvidosas, incertas de si mesmas e que por isso precisam ser exacerbadas em sua encenação, em suas performances, em suas poses, em suas encarnações corporais, gestuais, discursivas, comportamentais.

O retorno do troglodita parece ser a meta, acoplado ao retorno do senhor escravos, do chefe de família, do rei do lar, do coronel, do ditador. O retorno de figuras de autoridade inconteste, com um poder discricionário e sem limites. Bolsonaro é uma fantasia de masculinidade e de poder sem peias, fantasias que ele próprio alimenta.

Na “motociata”, como na maioria dos eventos bolsonaristas, há um clima de homossociabilidade, eventos em que machos sentem prazer e felicidade de compartilhar espaços e práticas com outros vistos como semelhantes. A homofobia que circula nos discursos e nos gestos de agressão e desrespeito aos homossexuais parece ser a encenação exasperada e barroca de uma heterossexualidade insegura e fragilizada.

Os machos parecem estar em pânico diante da presença crescente do feminino nos espaços públicos e nas posições de maior poder e destaque social.

As agressões misóginas sofridas pela ex-presidenta, em que foi mobilizado todo arsenal de mitos depreciativos em relação ao feminino, o pânico moral que se infundiu na sociedade durante as últimas eleições, andam a par com o pânico que sentem esses homens que julgam que o avanço das conquistas de direitos feitas por mulheres e homossexuais lhes roubam espaços e privilégios que seriam seus por direito natural ou divino, daí a recorrência com que uma ideia ultrapassada de natureza e uma concepção do divino extraído do Velho Testamento, se tornam as fontes dos argumentos brandidos contra o que seriam afrontas a Deus e a natureza.

A edição da Lei Maria da Penha, punindo com penas mais graves atos de violência contra as mulheres, a união civil de homossexuais aprovada pelo Supremo Tribunal Federal, o reconhecimento jurídico do crime de feminicídio, a equiparação do crime de homofobia ao crime de racismo e aprovação, em vários estados e municípios, de leis que punem a homofobia, leis que reconhecem o direito ao uso do nome social por parte de transexuais e transgêneros, embora sejam conquistas que atendem a diferentes agentes sociais, parecem estar amalgamados num perigoso avanço do feminismo e do feminino na sociedade.

Um dos objetivos de quem elegeu esse governo, e dele mesmo, é explicitamente reverter muitas dessas conquistas e dessas pautas, colocando em seu lugar uma pauta conservadora de restauração da família tradicional, inclusive com o retorno do ensino doméstico e a prevalência do ensino militar, para garantir que as novas gerações sejam educadas para o machismo, para a misoginia, para a homofobia, para a transfobia, tudo em nome da restauração do poder do macho, daí o desejo ardente de ver novamente corpos militarizados no poder.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.