Por médicos mais humanos e conscientes da realidade social
Os episódios que vivenciamos nos últimos anos, no País, apontam para a necessidade de uma completa revisão da formação médica no Brasil, notadamente em termos humanísticos e éticos. Nesse 18 de outubro, Dia do Médico, é relevante debater questões que envolvem a categoria. À história da formação dos médicos no Brasil, vieram se somar uma série de mudanças sociais e culturais, ocorridas nos últimos cinquenta anos, que impactaram fortemente o modelo hegemônico do sujeito médico, na sociedade brasileira.
O lugar de sujeito do médico, delineado por uma tradição que vem da sociedade aristocrática, imperial e escravocrata, do século XIX, veio se transformando à medida que a sociedade burguesa, capitalista, tecnológica e moderna foi se desenvolvendo ao longo dos séculos XX e XXI.
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Os espantosos casos de um Conselho Federal de Medicina que se opõe à popularização da prática médica no País, a ponto de militar politicamente contra o Programa Mais Médicos e ser terminantemente contra a criação de novos cursos de medicina; a forma como grupos de médicos receberam seus colegas cubanos, que vieram atuar em locais do país em que os médicos brasileiros não queriam ir, mesmo recebendo boas ofertas de trabalho e junto a populações desassistidas pelos profissionais de saúde, com explícitas demonstrações de racismo e xenofobia, quando não de um anticomunismo fora de época; o apoio do Conselho Federal de Medicina ao uso de medicamentos sem comprovação científica contra o Covid-19, se colocando como fiador da política negacionista e anticientífica do Governo Federal, passando ao largo dos códigos e regras emanados do próprio CFM; as experiências levadas a cabo com seres humanos, feitas em hospitais privados, desrespeitando os protocolos científicos e éticos que devem balizar a pesquisa médica, algumas realizadas à revelia dos órgãos de fiscalização e controle; a adulteração de prontuários médicos para esconder ou modificar a causa mortis dos pacientes; o desligamento precoce de aparelhos que poderiam manter vivos os pacientes, para que abrissem vagas nas Unidades de Terapias Intensivas, são fatos alarmantes a requerer uma Comissão Parlamentar de Inquérito que, entre outras coisas, investigue a formação que está sendo dada aos médicos no País.
As primeiras Faculdades de Medicina do Brasil foram criadas no ano da chegada da Corte portuguesa. Em 18 de fevereiro de 1808, criava-se a Faculdade de Medicina da Bahia, com o nome de Escola de Cirurgia da Bahia, sob a inspiração do médico pernambucano Correia Picanço. Nove meses depois, com a Corte portuguesa já instalada no Rio de Janeiro, abria as portas a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro.
Essa relação entre a criação das primeiras escolas médicas e a instalação do governo monárquico português, entre nós, não será sem consequências para a autoimagem da profissão médica no país.
Até hoje o exercício da medicina no Brasil está associado à uma concepção aristocrática de distinção e superioridade hierárquica, marcas de uma sociedade nobiliárquica. Para algumas pessoas, ser médico ainda é visto como um lugar de distinção e diferenciação.
Em alguns casos, os cursos de Medicina possuíam, até recentemente, um caráter elitista e serviam para formar os filhos das classes dominantes no País, notadamente os filhos dos próprios médicos. Como numa sociedade nobiliárquica, os títulos adquiriram caráter hereditário, com consultórios, clínicas e hospitais passando de pai para filhos, por gerações seguidas e sendo voltados para distinguir o que seria uma elite intelectual e econômica.
Os preços cobrados em cursos de Medicina privados, alguns de qualidade duvidosa, servem, de saída, para distinguir economicamente e socialmente aqueles que podem pagá-los. Assim como nos cursos de Direito, outra criação da sociedade monárquica, os cursos de Medicina são os únicos que concedem o título de doutor para um mero graduado, sem que precise sequer fazer um curso de pós-graduação. No Brasil, passou a ser importante para as elites políticas e econômicas ter um filho doutor, à medida que a cultura bacharelesca se desenvolveu, ao longo do século XIX e início do século XX.
Essa é uma primeira distorção grave da carreira médica no País: para alguns, o título se sobrepõe ao conhecimento, é mais importante fazer um curso de Medicina por causa do status social que oferece, do que pelo conhecimento que possa fornecer.
Alguns médicos formados no Brasil foram fazer o curso muito mais atraídos pela distinção social que ele oferece do que realmente pela vocação. A lógica da distinção é que explica a resistência de muitas faculdades de Medicina de virem para o interior dos campi das universidades federais. Uma parcela de integrantes resistem a se misturar com os demais cursos, reivindicam a manutenção de seu espaço próprio e destacado, abominam a realização de colações de grau em conjunto com os demais cursos, mesmo os da área da saúde.
A distinção também é garantida pela forma de vestir e pela forma ininteligível como grafam as suas receitas. Vestir roupas especiais está ligado à particularidade da profissão, mas envergar o branco em todo e qualquer lugar se tornou uma maneira de se distinguir dos demais. Há alguns alunos de medicina, nos primeiros períodos do curso, já fazem questão de envergar suas batas brancas, como um nítido traço de distinção e de status.
A “letra de médico” (muitas devem ser ensaiadas para serem tão incompreensíveis) é uma espécie de código secreto, de um esperanto, que configura um aspecto preocupante diante da possibilidade de erro na leitura e interpretação de receitas e diagnósticos por parte do pessoal de enfermagem, dos farmacêuticos e dos próprios pacientes.
Ainda há quem mantenha tal prática, na qual, onde deveria haver transparência e clareza, há obscuridade, em nome da produção de uma marca distintiva.
Essa suposta distinção é acompanhada de uma visão hierárquicas das relações entre as profissões e os profissionais. Na sociedade brasileira, durante muito tempo, era indiscutível que a profissão médica estava no topo das profissões liberais.
A concorrência altíssima nos vestibulares, o oferecimento de um limitado número de cursos, de vagas, inclusive para a realização da residência médica, reforçava não só essa percepção social da Medicina como um curso de elite, mas efetivamente dava origem a uma formação elitista e completamente alienada das condições sociais do país onde os médicos iriam atuar.
Somente os descendentes das classes médias e altas, que podiam frequentar os melhores colégios e os melhores cursinhos, que podiam adquirir os livros e contar com a ajuda dos conhecimentos dos próprios pais médicos conseguiam ter sucesso nessa verdadeira corrida de obstáculos para galgar esse pretenso pináculo das profissões liberais. Aquela, que, com o tempo, passou a significar a possibilidade de “ganhar dinheiro”, o que distorceu mais uma vez a demanda pelo curso.
Com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), com o declínio da figura do médico de família, grande parte desses médicos, que muitas vezes nunca na vida tinham convivido com uma pessoa de baixa renda, têm que atender essas pessoas pelas quais podem não sentir a menor empatia. É o encontro de dois mundos de difícil comunicação.
Às vezes os médicos têm dificuldades de entender a queixa dos pacientes, o que dizem, os nomes e causas que dão para seus males, muitos deles nascidos das carências alimentares, emocionais e afetivas de pessoas maltratadas pela vida e que fazem doenças de caráter psicossomático com muita frequência. O médico se torna para muitos uma espécie de confessor de seus males, que muitas vezes se traduzem fisicamente, mas são de outra natureza.
Podemos até falar, em alguns casos, o reacionarismo médico, que se espalhou pela sociedade brasileira (foi um grupo profissional onde o bolsonarismo teve enorme recepção, muitos transformando seus consultórios em local de propaganda antipetista), se deve a alguns fatores, que estão interligados: o caráter de classe da Medicina no País, inclusive a sua diferenciação racial (afinal o branco é a cor da profissão), vem sendo abalada, primeiro com a própria perda de status da profissão, com o surgimento de novas profissões ligadas ao novo mundo digital e tecnológico, que passaram a ter maior destaque e garantir melhor remuneração, daí o verdadeiro pânico com a popularização (leia-se proletarização) da profissão, como já ocorreu com os advogados e professores.
Isso explica a luta pelo que seria uma reserva de mercado, mas que traz embutida uma tentativa de evitar que pessoas oriundas das camadas populares e pessoas negras e indígenas acessem a carreira. O racismo e o preconceito de classe campeiam entre muitos médicos, dificultando a relação com os pacientes e levando a comportamentos profissionais negligentes em instituições públicas que atendem a população mais carente do país.
Mas esse reacionarismo tem que ver com o fato de que muitos desses profissionais, até por sua origem de classe, estão mais dispostos a incorporar a visão neoliberal de mercantilização de todos os aspectos da vida, inclusive da saúde.
A Medicina privada passou a ser fonte de exploração e lucro, colocando a oferta de assistência e cuidado com a saúde, com a vida, como uma mercadoria.
A contradição em relação ao SUS expõe, por um lado, o verdadeiro lóbi feito por algumas entidades e setores médicos visando reduzir os investimentos em saúde pública, embora que, por uma distorção do sistema, os hospitais e clínicas privadas se sustentam, muitas vezes, graças aos repasses de recursos vindos do setor público.
É a prevalência da lógica do mercado e, portanto, da lógica da concorrência e do lucro, que explica a posição do Conselho Federal de Medicina contra a expansão do ensino médico no País, a pretexto de manter a qualidade. Esse tipo de raciocínio sobrepõe à velha lógica nobiliárquica da distinção e da hierarquia à nova lógica burguesa e capitalista da competição e do lucro.
O argumento da qualidade, argumento distintivo (o nobre, o aristocrata, se consideravam de outra qualidade) se soma ao argumento mercantil da quantidade, estabelecendo a falsa premissa de que só é bom se é pouco e exíguo, que o pequeno número de médicos formados é que garantiria a qualidade da formação, premissa falsa a se julgar por tantos médicos mal formados, notadamente do ponto de vista humanístico e ético.
Falta, efetivamente, à formação médica uma quantidade maior de disciplinas da área humanística (as poucas existentes são desprezadas como sendo “tamboretes”) e no campo da filosofia e da ética. A prática médica se dá no interior de uma realidade social que deve ser conhecida (histórica, econômica, sociológica e antropologicamente) e deve se dar a partir de valores e pressupostos filosóficos e políticos que devem ser tema de debates.
A formação médica não pode ser uma formação profundamente especializada, nem mesmo do ponto de vista do campo da saúde. A formação generalista, de alguém que entenda não apenas das dimensões biológicas, mas também psicológicas da existência corporal humana é fundamental.
O corpo é uma construção social e cultural e não pode ser reduzido à sua mera carnalidade. Tratar do paciente apenas como carne pode transformar médicos em carniceiros, capazes de decidir quando alguém vai viver e morrer, como tem mostrado as recentes investigações da CPI. Capazes também de fazer seres humanos de cobaias de experimentos abstrusos, notadamente aqueles pelos quais não se tem empatia, por serem diferentes: pobres, negros, indígenas, homossexuais, transexuais, portadores de necessidades espaciais, doentes mentais, etc.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.