Capitalismo e meio ambiente: Maceió como caso exemplar dessa relação

Legenda: Bairro fantasma em Maceió
Foto: Agência Brasil

Desde os seus primórdios, entre os séculos XIV e XVI, a acumulação primitiva do capital, que levou a emergência do capitalismo, do modo capitalista de produzir, se deu às custas da brutal exploração da força de trabalho, através da servidão e da recriação moderna do trabalho escravo, e da brutal exploração dos recursos naturais. O capitalismo é um modo de produção que acelerou a mercantilização e transformou em mercadoria não apenas a força de trabalho humana, como todos os recursos oferecidos pela natureza.

A busca sempre crescente de lucro e de ampliação dos mercados consumidores levou ao processo de expansão marítima europeia e, com ela, a predação das riquezas encontradas em todas as partes do globo. A mundialização do capitalismo se deu às custas do genocídio, da servidão e da escravização das populações nativas das Américas, da África, da Ásia e da Oceania.

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Nesse mesmo movimento, o capitalismo promoveu a migração e transplantação de espécies animais e vegetais, notadamente aquelas que podiam ser exploradas comercialmente, como aconteceu com a cana-de-açúcar, que chega ao Brasil trazida das ilhas do Atlântico, onde já tinha sido aclimatada após ser transportada do oriente. Ao mesmo tempo, a adoção das chamadas plantations, plantações em larga escala de uma única espécie vegetal com interesse comercial, como a cana-de-açúcar, o algodão, o cacau, o milho, levou a um longo processo de devastação das florestas e matas nativas, de poluição dos rios, de destruição de arranjos e formas locais de produção, levando a fome e a acentuação de problemas climáticos como secas e enchentes.

A construção de ferrovias, de estradas de rodagem, ligando as terras interiores a portos, visando a exportação, submeteu as economias locais aos ditames dos interesses e demandas do mercado externo e desorganizou as economias comunitárias e de subsistência, tornando as populações mais dependentes do mercado para suprirem a sua subsistência, tornando-as vulneráveis às oscilações de preços e oferta de produtos. A intensificação do ritmo de produção e a demanda cada vez maior por matérias-primas levou a uma exploração crescente e sem limites dos recursos naturais.

Com a chamada Revolução Industrial, ocorrida entre os séculos XVII e XVIII, a demanda por fontes de energia para movimentar os artifícios mecânicos, as máquinas, as fábricas, deu início ao processo de carbonização da atmosfera, inicialmente com a utilização do carvão mineral ou vegetal e, posteriormente, com o uso dos combustíveis fósseis, notadamente o petróleo, que está provocando, em nossos dias, o que se vem chamando de aquecimento global ou de crise climática, que se consubstancia numa elevação progressiva da temperatura da terra, o que pode vir a inviabilizar a vida no planeta, notadamente a vida humana.

A predação dos solos em busca de minerais indispensáveis à fabricação de produtos cada vez mais artificiais e sofisticados, para atender, notadamente, uma demanda crescente de consumo por parte das camadas médias e mas abastadas da população, notadamente nos países centrais ao sistema capitalista, deixa um rastro de destruição, de solos degradados, de paisagens devastadas e estéreis, de cursos de água contaminados ou aterrados, de muita miséria, de doenças e mutilações entre os trabalhadores dessas atividades.

Na semana em que se realiza, nos Emirados Árabes Unidos, a vigésima oitava Conferência do Clima (COP-28), vivemos no Brasil um episódio que é um resumo e um testemunho eloquente da relação problemática entre modo de produção capitalista e meio ambiente: o ameaça do afundamento de uma mina na cidade de Maceió.

A ambição, a sede de lucro, a busca da acumulação a todo custo, a necessária produção da mais-valia, a busca pelo crescimento sem paradeiro do valor, a concepção de que o progresso e o desenvolvimento, além de serem necessários, podem ser infinitos, nunca alcançam um limite, são traços dos modos de pensar e sentir, das subjetividades constituídas pelo capitalismo, são visões do tempo e da vida, visões de mundo que praticamente impossibilitam uma relação que não seja predatória sob o capitalismo.

Vive-se a vigésima oitava reunião de todos os países do mundo em busca de evitar que o processo de degradação ambiental, que o aquecimento global inviabilize a continuidade da vida da espécie humana e muito pouca coisa foi feita de verdade, pois a medida que o capitalismo se tornou, inclusive, a partir dos anos oitenta, um sistema globalizado, com o fim das experiências socialistas fracassadas (que diga-se de passagem não foram menos predatórias da natureza de que o capitalismo), o que se tem é uma ampliação da brutal exploração dos recursos naturais.

A conversão da economia chinesa, por exemplo, de uma economia dita comunista para uma economia capitalista deu início a um brutal processo de exploração da mão-de-obra e da natureza naquele país. Para atingir taxas de crescimento econômico anuais acima dos 10%, o que se viu, na China, foi a devastação de amplas áreas de florestas nativas para a produção de carvão, a poluição de seus grandes rios e de suas cidades, que em certos dias chega a taxas letais, destruição ambiental que tem causado fenômenos como o do surgimento de epidemias como a da Covid-19, quando micro-organismos que parasitavam espécies animais terminam por migrarem para os seres humanos, à medida que essas espécies se reduzem drasticamente ou entram em contato com os seres humanos, quando as áreas rurais se tornam cada vez mais próximas das áreas urbanizadas, fenômeno que também ocorreu na América do Sul, com a infestação da febre-amarela urbana ou em vários países da África, com o HIV e o Ebola.

Muita gente não sabe, mas a Petrobrás teve uma participação decisiva no que está acontecendo agora em Maceió. Em 1941, ao usar sondas para prospectar a presença ou não de petróleo na área da lagoa do Mundaú, a Petrobrás descobriu um leito de sal-gema abaixo da capital de Alagoas. Segundo relatório do engenheiro Tenório Cavalcante o sal-gema encontrava-se a uma profundidade de mil metros e era de alta pureza. Mas foi o empresário baiano Euvaldo Luz, que alugava as sondas para a Petrobrás e que percebeu a presença do sal-gema, que terminou por receber em 1966 a autorização da União para fazer a exploração, após uma concessão anterior dada a uma empresa internacional ter caducado, após 22 anos.

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Euvaldo Luz constituiu, então, a firma Salgema Indústrias Químicas Ltda, após quase perder a possibilidade de exploração para a empresa norte-americana Dow Química, que recebera da parte dele proposta de sociedade e que tratou de apresentar a Sudene um projeto para se apossar da descoberta do empresário brasileiro. Euvaldo Luz acaba negociando uma sociedade com a DuPont que passa a deter 45% da empresa. Em 1971, o Banco de Desenvolvimento Econômico (BNDE), atual BNDES, adere ao projeto e passa a controlar 10% da empresa, duplicando o seu capital com uma injeção de 140 milhões de dólares. Em 1975, o grupo Euvado Luz vende sua participação para a Petroquisa. Em 1974 teve início a construção da fábrica de cloro-soda, o campo de salmoura e o terminal marítimo. Nos anos oitenta, a Norquisa e a Copene passam a ter participação no empreendimento e no início dos anos 2000, o Grupo Odebrecht, que já fazia parte da empresa desde os anos noventa, assume o controle acionário através da Odebrecht Química S/A e a nomeia de Braskem, em 2002. A Petrobras ainda detém 36,15% da empresa e o grupo Novonor (novo nome da Odebrecht Química S/A depois do escândalo da Lava Jato) detém 38,32%.

Desde os anos setenta, quando foram construídos a fábrica e o terminal de carga, que existem pareceres técnicos contrários à sua instalação num local próximo a bairros com grande concentração populacional, que foi ampliada com as oportunidades de emprego fornecidas pelo empreendimento. O governo Divaldo Suruagy, dizendo-se apoiado em pareceres de técnicos americanos, contratados pela DuPont, terminou por liberar a construção de uma fábrica que iria lidar com produtos químicos próxima a bairros residenciais, à beira de uma das mais importantes lagoas da cidade e à beira do Oceano Atlântico, sendo que o turismo de praias é uma das principais atividades econômicas da cidade.

O agravante é que a medida que as minas iam sendo exploradas, gerando enormes cavernas subterrâneas, as providências para seu preenchimento e para a estabilização do solo não foram devidamente tomadas, a justificativa é que a própria infiltração de água da lagoa iria preencher as cavidades e estabilizar o solo. O primeiro grave acidente ocorreu em 31 de março de 1982, quando uma violenta explosão na fábrica causou pânico na população de toda a redondeza, ou seja, o que se vive hoje não é algo que não pudesse ter sido previsto e as providências sido tomadas.

As minas ficam no subsolo dos bairros de Mutange, aquele onde a mina 18 ameaça desabar a qualquer momento, Bebedouro, Farol, Bom Porto e Pinheiro. Os poços das minas estão a uma profundidade equivalente a um prédio de quatro andares e o desabamento de uma delas pode levar a uma reação em cadeia em toda área. Desde fevereiro de 2018, quando rachaduras surgiram no solo do bairro do Pinheiro, uma delas com cerca de 280 metros - hoje um bairro fantasma, já que toda sua população teve que ser retirada de suas casas -, que é iminente uma catástrofe, sem que a Braskem, que foi à COP-28 falar de sua atuação favorável ao meio ambiente (nesse tema a hipocrisia reina, com as empresas fazendo do meio ambiente motivo de marketing empresarial, enquanto na prática continuam depredando a natureza), tenha sequer sido obrigada pelo Judiciário a indenizar os moradores dos cinco bairros afetados, muitos deles retirados às pressas e à força de mandado judicial, nos últimos dias, e alojados precariamente em escolas.

A área sofre há cinco anos com constantes tremores de terra e o solo já afundou cerca de 1 metro. Em 2019, o Serviço Geológico do Brasil finalmente admitiu que o solo havia sido desestabilizado e se deu inicio a remoção de mais de sessenta mil pessoas moradoras dos cinco bairros atingidos, com a desocupação de mais de quatorze mil imóveis.

O afundamento de Maceió, uma capital brasileira, uma cidade voltada para a atividade turística, em plena realização da COP-28, deixa claro a conivência das autoridades locais e nacionais com os interesses empresariais, se sobrepondo aos interesses da população e à própria existência e identidade de uma cidade (será que a Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, que recebeu oito milhões de reais da Prefeitura de Maceió, para fazer da cidade seu enredo em 2024, vai dedicar um setor do desfile a falar do buraco que ameaça engolir a cidade).

O buraco em que Maceió se meteu não é nenhuma novidade, é apenas mais um dos inúmeros desastres ambientais causados pela ganancia, pelo individualismo, pela sede de dinheiro e de poder, pelo caráter predatório do modo de produção capitalista. Ou a humanidade dá fim ao capitalismo ou ele dará fim a humanidade. A natureza parece, definitivamente, como disse o presidente Lula em seu discurso na abertura da COP-28, já ter enchido o saco, já não aguentar mais tanta retórica vazia, tantas promessas sem ação, tanta hipocrisia, tanta ganância, tanto imediatismo, tanto desejo cego de acumulação de capital a qualquer custo que, no caso da Salgema e da Braskem, tem a própria participação do Estado-empresário brasileiro, notadamente durante o período da ditadura militar.

As frases pintadas nos muros das casas abandonas pelos moradores são os protestos eloquentes de uma população que teve suas vidas destruídas para que alguns ficassem mais ricos e mais poderosos, podem ser lápides ou epitáfios a ser pintados no túmulo do nosso modo de produção: “Braskem me diz quanto vale o sal de nossas lágrimas”; “Enquanto eu dormia cavaram minha cova no fundo do meu peito”; “O amor morou aqui mas foi expulso pela ganância da Braskem”; “Maceió afunda em lágrimas”.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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