O fracasso da ideia de humanidade

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Ao longo dos séculos XVII e XVIII, na Europa, a ideia de Deus foi perdendo a centralidade que tinha na explicação das coisas terrenas e como a força que estava por trás dos fenômenos da natureza. Por seu turno, os avanços no campo das ciências naturais foi pondo fim a ideia de cosmos, fazendo surgir o moderno conceito de Natureza. Dela, por outro lado, o Homem, agora concebido como um ser universal, como um ser centrado no domínio da razão, se aparta, assumindo progressivamente o lugar nas coisas do mundo que era ocupada pela divindade.

O século das Luzes virá nascer a par com essa ideia de Homem como ser razoável e universal, a própria ideia de humanidade, que partia do pressuposto de que todos os humanos formavam uma só espécie, de que todos os humanos estavam destinados a um mesmo destino de civilização, liberdade e progresso. A modernidade surge sob o signo do humanismo, essa concepção de que tanto a natureza, quanto a história, agora também pensadas como um singular coletivo, estariam a serviço da realização da liberdade, da felicidade e da justiça entre os humanos, que eles estariam fadados a realizarem todas as potencialidades que a racionalidade conferia.

Embora sendo ideias aparentemente generosas, elas já traziam no nascedouro certos esquecimentos, o apagamento de certas realidades que as fizeram possíveis, além de não serem, na prática, tão universais quanto pareciam ser. Podemos dizer que a imagem do Homem que aparece no pensamento moderno europeu era etnocêntrico e racista, a medida que partia de uma hierarquização entre as raças humanas, uma distinção entre os europeus e aqueles não europeus. O Homem branco, desde a saída, era pensado, portanto, como gozando de mais humanidade do que os demais seres humanos.

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A hierarquia entre as raças e povos, entre aqueles ditos civilizados e aqueles considerados não civilizados, era também uma hierarquia de humanidades. Os pensamentos racialistas costumavam aproximar as chamadas “raças escuras” ou os homens e mulheres “de cor” como estando mais próximos da animalidade do que da humanidade. O próprio conceito de civilização aproximava aqueles considerados bárbaros ou selvagens da animalidade, muitas vezes os colocando na condição de sub-humanos. O próprio processo de colonização, em seu estágio imperialista, era legitimado e justificado pelo pretenso déficit civilizatório e, portanto, humanitário dos povos colonizados. O “generoso” projeto do homem branco europeu seria levar a civilização a todos aqueles povos que viveriam em estágios menos evoluídos do ponto de vista dos valores, do tipo de organização social e política, que deviam ter como padrão de avanço os modelos do colonizador.

Mesmo no interior da Europa haviam aqueles que ficavam excluídos de figurarem como exemplares e exemplos do Homem e da humanidade, ficando à margem de serem agentes do humanismo. O grupo de longe o mais numeroso eram as mulheres, que o próprio conceito de Homem excluía de saída. Esse sujeito pretensamente universal nunca deixou de efetivamente ser pensado no masculino, de considerar o seu lado feminino como padecendo de debilidades, inclusive do ponto de vista da racionalidade. Podemos dizer que as mulheres gozavam de uma humanidade de segunda categoria.

A própria proximidade com a natureza, por serem elas responsáveis pela gestação de novos seres humanos, dotavam as mulheres de certo déficit de humanidade. Mas não eram apenas as mulheres que não eram humanas suficientemente, isso também ocorria com as crianças, com os doentes mentais, com os chamados degenerados física e moralmente, como: criminosos, pederastas, vagabundos, mendigos, etc. Mesmo a classe trabalhadora, composta em sua maioria por pessoas do sexo masculino, muito teve que lutar para ter a sua condição humana plenamente reconhecida. Podemos concluir, portanto, que aquele Homem dito universal, aquele sujeito singular e coletivo da história, era, na verdade, os homens brancos, europeus, heterossexuais, adultos, razoáveis, etc.

Creio que diversas cenas que estamos assistindo nas últimas semanas deixam patente que uma visão, ao mesmo tempo, universal e inclusiva da humanidade fracassou. Me parece patente que ainda estamos diante do fato de que há seres com a aparência humana que não gozam do estatuto de humanidade. Quando o ministro da defesa de Israel chamou os palestinos de animais (com a luxuosa colaboração da deputada brasileira Carla Zambelli, que publicou no X uma imagem onde os palestinos figuravam como ratos, mesmo animal com que os judeus foram comparados pelos nazistas) e, em seguida, como consequência dá início a um massacre sem precedentes, sob os olhos e holofotes impotentes e omissos de todo o mundo, não temos dúvida que as mulheres, as crianças, os idosos habitantes da Faixa de Gaza não fazem parte da chamada humanidade.

Não é nenhuma surpresa que a toda a população palestina aprisionada no gueto de Gaza não seja oferecida ajuda humanitária, que só teria cabimento para quem está incluído na humanidade. Quando Israel, com o apoio dos Estados Unidos, se negam a criar corredores humanitários para que os feridos possam ser evacuados e levados para receber tratamento no Egito, é porque esses corpos e essas pessoas não gozam do mesmo estatuto de humanidade de seus algozes. Se o mundo, com toda razão, se indignou diante das vidas de inocentes israelenses massacrados pelo Hamas, no início do conflito, e hoje fecham os olhos para o genocídio perpetrado contra os civis palestinos, é porque certamente os israelenses são mais humanos do que seus vizinhos.

Como se pode entender a tentativa inescrupulosa de um jornalista brasileiro de justificar o bombardeio israelense a um comboio de ambulâncias na frente de um hospital em Gaza, com o argumento de que em uma delas estariam escondidos militantes do Hamas, senão pelo déficit de humanidade dos palestinos, inclusive dos militantes do Hamas. Parece quedar claro que de um lado lutam seres humanos e do outro: bestas, feras, animais, selvagens, loucos, insanos, enfurecidos, fanáticos, um amplo conjunto de categorias que servem para nomear aqueles que devem ser alijados da condição humana.

Quando os organismos internacionais, quando um grande número de autoridades mundiais assistem impassíveis ao extermínio projetado e sistemático de todo um povo, ao qual é negado não apenas a obediência as leis internacionais, a observância dos direitos humanos, mas os itens básicos para a sobrevivência da própria espécie humana: comida, água, medicamentos, energia, combustíveis, etc, fica claro para mim que a própria ideia de humanidade fracassou, que há aqueles e aquelas que continuam sendo alijados da condição humana, do estatuto de membros da humanidade, com a mesma dignidade e direitos.

No Brasil assistimos, todos os dias, a matança daqueles que não têm o direito de reivindicar sua humanidade, como os pobres, os pretos, os homossexuais e, inclusive, em grande número, as mulheres. A extrema-direita faz verdadeira campanha contra os direitos humanos e defende a execução sumária dos chamados bandidos (os pretos e pobres bem entendido), a eliminação de CPFs, o que mostra que mesmo as vidas já desumanizadas pelos ditames do capitalismo, pela coisificação mercadológica da força de trabalho humana, ainda podem ser mais desumanizadas a ponto de atingir a condição de vidas sem direitos, vidas nuas, animalizadas, reduzidas a condição biológica de seres matáveis.

A defesa pública da tortura deixa claro que para os bolsonaristas, e gente da mesma espécie, a categoria humano e humanidade não deve ser aplicada a todo mundo, havendo aqueles e aquelas excluídos dessa categorização. Para muitos cristãos, os fetos ainda não nascidos parecem gozar de mais humanidade do que as milhares de crianças palestinas e brasileiras que estão tombando todos os dias.

No último final de semana, quando ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, a final da Taça Libertadores, presenciamos cenas e ouvimos declarações da parte de torcedores argentinos do Boca Juniors que não só nos faz pensar que a crise do conceito de humanidade parece generalizada, como constatamos que a sociedade argentina está tão doente de fascismo quanto está a sociedade brasileira e que a eleição do fascista Javier Milei para presidir aquele país é uma possibilidade iminente. Em mais de uma oportunidade os argentinos foram flagrados fazendo gestos, gritando impropérios e cantando canções de conteúdo racista.

Nessas falas e gestos, os brasileiros não só eram chamados de escravos (o esquecimento de que na Argentina houve a escravização de sua população indígena, que não se trata de uma sociedade branca a europeia, esquecendo de mirar para o rosto de seu eterno ídolo Maradona, que tinha traços herdados da população autóctone) como eram xingados de macacos, o que remete para a animalização dos que nascem no Brasil. O que esses torcedores argentinos estavam fazendo eram alijar os brasileiros, por serem afrodescendentes, por serem negros ou pardos, da condição de humanos.

A humanidade seria um monopólio de nossos irmãos portenhos pretensamente brancos e, por isso europeus, (para esses racistas seria um insulto chamá-los de irmãos) que não tenho dúvida devem ser eleitores do Bolsonaro do rio da Prata, tão histriônico e ignorante quanto o mito verde-amarelo, aquele duplamente inelegível por cometer crimes de caráter eleitoral, embora ainda não tenha respondido ainda por crimes como o de medir os quilombolas em arrobas e dizer que não serviam nem para procriar, para o riso fascista de uma plateia de judeus sionistas que, não por coincidência, hoje promovem o projeto de limpeza étnica na Palestina, diante dos olhos de todo mundo.

Me parece que a espécie humana, que nunca foi capaz de respeitar as outras espécies que habitam o planeta, que nunca foi capaz de se entender verdadeiramente como uma única humanidade ou, o que seria mais generoso, aceitar que a humanidade se vive e se exercita de diferentes maneiras, que existem distintos modelos e concepções de humanidade e que essa diversidade é que faz a riqueza da própria experiência humana na terra e que elas deveriam ser aceitas e respeitadas em suas diferenças, caminha a passos largos para sua própria destruição e desaparecimento, não só por desrespeitar todas as outras formas de vida do planeta, como pelo fato de não aceitarem que formas diversas e diferentes de humanidades sobrevivam e convivam sem que a sanha de extermínio do outro venha à tona. A cada ato de barbárie cometido na Palestina ou no Brasil me convenço que a ideia de uma só humanidade fracassou, que a desumanidade é o que mais impera.



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