Entre o desprestígio e o acosso: o que os professores têm a comemorar?

Foto: Thiago Gadelha

Nesse último domingo, dia 15 de outubro, foi o dia dos professores. Data que, algumas décadas atrás, era feriado escolar e dava margem à realização de eventos de comemoração, hoje passa quase em brancas nuvens, levando que até muitos docentes nem se recordem mais do “seu dia”. Esse ano, como caiu num domingo, se por um lado, pelo menos, garantiu a paralisação das atividades escolares, por outro, favoreceu ainda mais o esquecimento de tal efeméride por parte da comunidade escolar. Se o dia dos professores mobiliza cada vez menos aqueles que se dedicam à educação, imaginem o restante da sociedade. Em outros tempos, até pela paralisação das atividades escolares e acadêmicas, o dia comemorativo chegava ao conhecimento de uma parte da sociedade, já que as crianças e os adolescentes não iam às aulas, permaneciam em casa, alterando a rotina doméstica, notadamente nos setores mais abastados da sociedade, aqueles que tinham acesso à educação escolar em maior quantidade.

A perda de importância do dia dos professores é consequência da perda de prestígio social dessa profissão tão importante e central em qualquer sociedade. A expansão do ensino público, a universalização do acesso a educação escolar, a partir dos anos setenta do século passado, foi acompanhada, curiosamente, pela perda de importância social do professor. A massificação do ensino fundamental, a chegada das camadas populares às escolas, parece ter sido acompanhada da progressiva perda de valor social do universo escolar e de todos aqueles que o compõe, já que o dia do estudante, por exemplo, passou pelo mesmo processo de crescente invisibilidade e desimportância. Parece que a popularização da escola e a chegada dos pobres a essa instituição a fez perder destaque e legitimidade social. A aporofobia, o preconceito de classe, tão arraigados e estruturais na sociedade brasileira, ao lado do racismo, já que a chegada dos mais pobres ao universo escolar – inclusive nas últimas décadas as universidades – implicou também o acesso da população negra a esse espaço institucional até então majoritariamente branco, parece ter acarretado a desvalorização da instituição escolar e, com ela, de todos aqueles e aquelas que a compõem e integram.

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Enquanto o acesso à educação escolar era uma marca de distinção de determinados setores sociais, enquanto ter acesso ao letramento, ter acesso à vida escolar, receber um diploma universitário era para os mais privilegiados, era um traço distintivo de classe, de raça e até de gênero – já que a presença das mulheres na vida escolar, notadamente no ensino superior, só se ampliou a partir dos anos setenta do século XX – a escola era uma instituição profundamente valorizada e aqueles que a integrava, notadamente os professores, gozavam de destaque e prestígio social, embora os salários pudessem já não corresponder a importância reconhecida que esses profissionais tinham.

Como a maioria dos professores, notadamente as professoras do ensino básico, as famosas normalistas, provinham, em sua maioria, desses setores privilegiados da sociedade, ou no máximo, de setores de classe média baixa, a profissão gozava do prestígio que advinha desse próprio pertencimento social. A medida que os cursos de Licenciatura, de preparação para o magistério, passaram a atrair, preferencialmente, pessoas de condições econômicas mais limitadas - já que a expansão da oferta de ensino universitário, a partir dos anos setenta, ofertou outras carreiras de maior prestígio social para os setores mais abastados da sociedade, que dominaram até algumas décadas atrás o ingresso nas universidades públicas de maior qualidade -, esses cursos e os profissionais neles formados passaram a gozar de menor reconhecimento social.

Mas, talvez, o fator que mais contribuiu para essa perda de visibilidade social da profissão docente foi a progressiva feminização dessa atividade. Com o progressivo domínio feminino na docência do ensino fundamental, notadamente nas séries iniciais, associadas a ideia de cuidado e vistas como uma extensão da função materna – surgindo um verdadeiro preconceito contra a presença masculina no ensino das primeiras letras às crianças, o que era comum em outros tempos (a extrema-direita chega, hoje, a associar ensino masculino nas primeiras fases da educação escolar à pedofilia) – a profissão docente foi perdendo destaque social.

Como consequência e extensão da dominação masculina, como mais uma faceta do desprestígio social do feminino, o ser professor e, notadamente, o ser professora – o que se tornava cada vez mais comum – fez a profissão ser vista, cada vez mais, como menos desejável, como de menor prestígio, como oferecendo menor visibilidade e status social.

É evidente que a perda de valor social da profissão esteve atrelada a baixa remuneração oferecida, uma relação tão umbilical que é difícil dizer o que veio primeiro, a medida que se constituiu um verdadeiro círculo vicioso: não se tem prestígio porque não se é bem remunerado e não se é bem pago porque a profissão é desvalorizada. Enquanto na Alemanha nenhum profissional liberal, nenhum funcionário público pode receber um salário maior do que de um professor, já que essa profissão forma os profissionais de todas as demais áreas, no Brasil, a medida que a oferta de ensino público foi se expandindo e se universalizando, os salários oferecidos aos professores e professoras só tenderam a se reduzir. O crescimento progressivo da categoria docente, com impactos crescentes nos orçamentos públicos, notadamente de estados e municípios, foi o pretexto para um achatamento salarial que levou a que o acesso a essa atividade fosse cada vez mais desvalorizado, levando a que se tornasse um profissão que atrai, muitas vezes, aqueles que, por falta de condições, não conseguem fazer outros cursos (inexistência da oferta de outras formações na localidade onde moram ou em suas proximidades, falta de recursos para pagar outras graduações, falta de preparo para ser aprovado nas seleções para outros cursos), formando profissionais que, já de saída, são desmotivados e, em alguns casos, pouco comprometidos com o que fazem.

Quando um filho ou uma filha (notadamente um filho) anuncia, hoje, que vai cursar uma graduação para ser professor ou professora, isso é motivo de preocupação quando não de oposição e desestímulo por parte dos pais. O horizonte de expectativa de um profissional do magistério supõe, no máximo, que ganhará para viver uma vida digna, de classe média baixa, tendo que, para isso, trabalhar muitas horas por semana, trabalhar em várias escolas, quando não em várias localidades, tendo, hoje, que enfrentar além do desprestígio social, o desrespeito e o acosso moral. A perda de legitimidade social da profissão veio acompanhada, como não poderia deixar de ser, de perda de autoridade, de poder, dentro e fora da sala de aula. Os professores e professoras, em nossos dias, têm que conviver com o desrespeito cotidiano, não apenas por parte de proprietários de instituições privadas de ensino, que os tratas como meros empregados de baixo estatuto, que se pode substituir e demitir a qualquer momento, evitando ao máximo a contratação com o mínimo de garantias (a proletarização da profissão permite que, hoje, não haja diferença entre como se contrata um professor e qualquer trabalhador menos qualificado), mas também de todos aqueles que fazem o staff escolar e, inclusive, dos alunos.

Vivendo numa época em que os chamados influencers e especialistas pontificam nas redes sociais e na internet, nos meios de comunicação, em que qualquer um pode se arvorar a falar sobre os mais variados assuntos, os professores são cada vez mais confrontados nas salas de aula, pelos próprios alunos, que desacreditam daquilo que eles dizem ou transmitem porque não tem o prestígio conferido pelo meio digital, pelas mídias. O professor e a professora tendem a ser vistos como profissionais obsoletos que ainda pertencem ao mundo analógico dos livros e dos cadernos, possuem conhecimentos livrescos que estariam desatualizados e que devem ser contestados a partir dos achismos e informações repassadas pelos sábios das big techs. Mesmo que venham procurando se atualizar, inclusive tecnologicamente, que venham incorporando essas novas linguagens as suas atividades docentes, a imagem pública do professor e da professora parece ainda remeter ao mundo anterior a revolução digital. Como muitos e muitas não possuem mesmo a destreza digital de seus alunos e alunas, tendem a ser vistos como sobreviventes de uma outra época, uma espécie em extinção, profissionais dispensáveis e, por isso mesmo, que merecem pouco respeito e consideração (embora, é claro, ainda haja muitos alunos que amam e são gratos a seus professores, que os admiram e os respeitam).

Mas, hoje, os professores e professoras têm que conviver, para além do desprestígio social, e talvez como consequência dele, com a violência e o acosso moral, com a verdadeira campanha de desmoralização e desqualificação encabeçada pela extrema-direita, dentro e fora das escolas. Ainda essa semana, o professor de sociologia Michel Gherman abandonou um debate na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, porque o clima de intolerância em relação as suas posições, que podem e devem ser discutidas, chegou a se tornar ameaçadoras, com alunos querendo proibir o debate. Um grupo de bolsonaristas está fazendo uma lista de professores que consideram ser favoráveis ao Hamas nas redes sociais. Todos os dias professores e professoras são ameaçados em sala de aula, têm suas falas gravadas por celulares, sem permissão e clandestinamente tem suas imagens disponibilizadas nas mídias digitais. Atividades acadêmicas on-line têm sido sistematicamente invadidas por hackers, onde se cometem agressões verbais, se utilizam palavras de baixo calão para se referir aos docentes e aos conteúdos ou temas ali expostos ou discutidos, buscando inviabilizar as atividades. Para a extrema-direita a ideia é que todos os professores e professoras são comunistas, fantasia alimentada, inclusive, por colegas de profissão que aderiram a posições conservadoras e extremistas.

Os professores e professoras têm que conviver com preconceitos que partem, por um lado, de setores fundamentalistas religiosos, que jugam que todo professor ou professora é ateu, desqualifica as religiões, tem preconceitos contra os religiosos (quando qualquer pesquisa mostrará que a maioria dos docentes são crentes e muitos deles, inclusive, evangélicos) e, por outro, com a desqualificação do saber científico, o preconceito contra os intelectuais, a desconfiança do saber universitário, que fazem parte da pretensa revolução cultural que a extrema-direita tenta empreender. Os docentes se tornaram um bode expiatório dos embates ideológicos os mais rasteiros em nossa sociedade. Como diante de um quadro desses comemorar o dia 15 de outubro? Parece que até mesmo quem é professor quer mais é esquecer esse dia, que os remetem, nostalgicamente, para os bons tempos em que ser professor dotava alguém de prestígio e respeito, não era uma ameaça a saúde física e mental, quando o professor não era alvo de campanhas de desmoralização e até de tentativas de criminalização (a escola sem partido, a ideologia de gênero são iniciativas que visavam e visam atingir a profissão docente, coloca-la sob suspeita), como vemos nos últimos tempos, ainda tendo que lidar com má remuneração e exploração excessiva no trabalho (professor é a única profissão que o expediente não acaba quando a escola fecha, que se leva trabalho para casa, onde não há final de semana ou feriado, nem mesmo dia de professor onde não se esteja trabalhando). Eu escrevi essa coluna no dia do professor, não sei se foi bem uma forma de comemorar, mas de pelo menos dizer que seguimos firmes, que ainda amamos fazer o que fazemos e não paramos nem mesmo no dia em que deveríamos estar na comemoração ( talvez uma maneira de dizer: eles vão ter que nos engolir!).

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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