Quando morrem e se matam crianças

Legenda: Crianças estão sendo mortas por conta do conflito
Foto: MAHMUD HAMS / AFP

Uma das páginas mais chocantes dos massacres promovidos pelo grupo terrorista Hamas e pelo Estado terrorista de Israel é o assassinato sistemático de crianças. Somente na Faixa de Gaza o número de crianças mortas já passa de mil e quinhentas. A esse número devemos acrescentar todas aquelas mutiladas, feridas, traumatizadas, tornadas órfãs, nos dois lados do conflito. Quando se mata crianças o que se está tentando fazer é exterminar uma dada população, o que se está querendo é que esse povo não tenha futuro, o que se está perpetrando é um genocídio, a busca racional da eliminação de uma população. Tanto o grupo Hamas, quanto o Estado de Israel operam com a lógica do extermínio completo do inimigo, não reconhecem a existência do outro, o seu direito de existir.

O grupo palestino não reconhece a existência do Estado de Israel, não aceita a ocupação israelense da Palestina, talvez sonhe com o extermínio dos judeus, o que explicaria a brutalidade e a crueldade dos ataques que realizou contra a população civil, contra pessoas inocentes e desprotegidas, como as crianças, cujo único crime seria o de ter nascido israelense. Já o governo israelense realiza uma matança, tomado pelo ódio racista e pelo desejo de vingança, equipara os palestinos a animais e, portanto, justifica assim o ataque indiscriminado a população civil da Faixa de Gaza.

O Estado de Israel, o governo fascista de Benjamin Netanyahu, há muito sabota a possibilidade da criação de um Estado palestino, o cumprimento da resolução da ONU que criou o próprio Estado judeu, que previa a existência de dois Estados convivendo na mesma região. A forma mais eficaz de evitar que um dia exista um Estado dos palestinos é não só ocupar paulatinamente todo o território da Palestina, como Israel vem fazendo sistematicamente com as ocupações ilegais de territórios palestinos, com as expulsões de assentamentos palestinos e a criação de colônias judaicas na Cisjordânia, como com o paulatino extermínio desse povo.

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O estúpido ataque do Hamas, que curiosamente não teve a resposta esperada de Israel, num primeiro momento, (o que levanta sérias suspeitas de ter sido negligenciado de propósito), abriu a oportunidade que o governo de extrema-direita, genocida, de Israel, esperava para avançar em seus planos de inviabilizar a existência de uma Palestina com um governo próprio, com Forças Armadas próprias, com uma estrutura de Estado que possa fazer frente e rivalizar com o Estado judeu. Para alcançar o objetivo de impedir que haja qualquer futuro para a população palestina naquelas terras nada mais adequado do que matar as suas crianças, as futuras gerações que, na cabeça da extrema-direita israelense, não passam de futuros terroristas, de projetos de inimigos.

A cada guerra com os árabes, Israel não só foi expandindo seu território e encurralando a população palestina em verdadeiros guetos, como é hoje a Faixa de Gaza, onde vivem mais de dois milhões de pessoas, numa faixa de terra de quarenta quilômetros de extensão e oito quilômetros de largura, como foi inviabilizando a vida das populações palestinas, submetendo-as a todo tipo de proibições, até mesmo de entrarem em Israel para trabalharem, na tentativa de inviabilizar sua permanência no território e forçar a diáspora de toda a população não judia. A formação de grupos extremistas como o Hamas foi causada e é alimentada pela situação de miséria e de opressão em que vivem os palestinos, violentados e humilhados com frequência.

Desconfia-se que na origem o grupo Hamas contou com o beneplácito do Estado judeu já que rivalizava e não reconhecia a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e a liderança de Yasser Arafat, como hoje rivaliza com a chamada Autoridade Palestina, instalada na Cisjordânia, que ao optarem pela luta política pacífica, abriram a possibilidade de que a comunidade internacional, notadamente o governo norte-americano, o eterno cúmplice do Estado israelense, pressionasse para a criação do Estado palestino.

A atuação desastrada do Hamas abre mais uma oportunidade não só para que Israel, a pretexto de defender seus cidadãos contra os foguetes e mísseis palestinos, expanda mais seu território ocupando definitivamente todo o norte da Faixa de Gaza (a pressão para que a população palestina fugisse para o sul deixa isso explícito, além da verdadeira demolição de todas as cidades dessa área, o que seria a limpeza do terreno, que os bombardeios israelenses vêm fazendo), como abriu uma oportunidade para o extermínio de parcela da população palestina, notadamente das crianças que, armadas de “perigosas” fundas, pedras e paus desafiam os tanques e soldados armados de Israel.

Mas, um aspecto para o qual eu queria chamar a atenção, é que a comoção justificada com que parcela da população brasileira, inclusive de suas elites, vê a matança de crianças no Oriente Médio, não é a mesma com que se vê a matança cotidiana de crianças pobres e pretas nas periferias e favelas do Brasil. Até os anos noventa do século XX, em nosso país, a mortalidade infantil ceifava 47,7 crianças por cada mil nascidas vivas.

No Nordeste, a mortalidade infantil atingia a cifra de 75,8 crianças por cada mil nascidas vivas. Era muito comum se ouvir as mães pobres dizer quantas crianças tinha parido e a diferença para o número de filhos e filhas que vingaram. Existia um verdadeiro culto a figura do anjinho, a criança que morria antes mesmo de ser batizada, que morria pagã e que, muitas vezes, por causa disso, vinha se manifestar como assombração ou aparição para seus pais ou parentes, solicitando orações para a salvação de sua alminha penada.

O enterro de anjinhos era um acontecimento banal, quase cotidiano, notadamente nos períodos de fome epidêmica como aqueles de ocorrência das secas.

Se hoje as políticas sociais reduziram drasticamente a mortalidade infantil, motivada pela desnutrição das mães e das próprias crianças, com os últimos dados, de 2019, apontando que no Brasil morrem 13,3 e no Nordeste 15,5 crianças por mil nascidas vivas, a matança das crianças pobres agora se dá notadamente quando elas alcançam a adolescência e são vitimadas por ações desastradas e racistas das forças de segurança.

Nessas ações em que se caçam, pretensamente, aqueles e aquelas envolvidos com o crime organizado, não é raro que crianças sejam baleadas pelas chamadas “balas perdidas”, ou que sejam executadas da forma mais cruel. Somos um país em que o racismo estrutural, o preconceito de classe contra os pobres, fez com que se visse o crescimento da população, o nascimento de crianças entre as camadas populares, como um perigo a ser combatido. Políticas de esterilização das mulheres pobres foram executadas oficial e extraoficialmente. Era comum se ouvir entre as camadas médias que os pobres tinham filhos demais e esse fato era responsável pela própria pobreza. Havia quem defendesse explicitamente a adoção de políticas de controle da natalidade e entidades como a Sociedade Civil Bem-Estar Familiar (BEMFAM) teve o apoio, inclusive, estatal para realizar controversas campanhas e ações voltadas para esse fim.

Enquanto da boca para fora, em público, todo mundo condena o aborto (como todo mundo no país não é racista), as clínicas clandestinas e os métodos abortivos caseiros, muitos deles levando a sérios riscos a saúde e a vida das mulheres, são utilizados a larga no país. Quem tem condições financeiras realiza o aborto em clínicas especializadas, a maioria das mulheres pobres, se não querem ou não podem levar adiante uma gestação, têm que recorrer a aborteiros e aborteiras clandestinos, muitas vezes sem nenhum preparo médico, ou a soluções amadoras, que levam a morte ou a esterilidade permanente de muitas delas.

No Brasil, notadamente no Nordeste, a fome e a subnutrição mataram por décadas a fio gerações de crianças. As doenças oportunistas, mesmo uma diarreia, levavam uma parcela considerável daqueles nascidos nos inúmeros partos de mães sem qualquer educação sexual ou reprodutiva. Hoje, em nossas favelas e periferias, onde morrem proporcionalmente mais pessoas do que estão morrendo agora na Faixa de Gaza, nos territórios que materializam o nosso apartheid social, as crianças continuam morrendo em grande quantidade, impedindo que elas venham a ter e sonhar com um futuro.

Temos que chorar e nos indignar pela e com a morte das crianças israelenses e palestinas, brutalizadas por uma guerra de adultos insanos e truculentos, adultos insensíveis, cruéis e desumanos, mas temos, sobretudo, que chorar pelos meninos e meninas brasileiros que, todo dia, pagam o preço por terem nascido pobres e pretas, por terem nascido indígenas, por serem portadoras de necessidades especiais, por serem transexuais e homossexuais, por serem vistas como do gênero feminino.

Vivemos afirmando que o Brasil é o país do futuro, mas que futuro pode ter um país em que milhares de crianças perdem a vida, todo ano, pela violência urbana e rural, por causa do racismo (lembremos do filho da empregada negra que foi deixado sozinho e que caiu do prédio, negligenciado e abandonado pela patroa branca), por causa da falta de oportunidades para ter uma vida melhor?

Um país que, nos últimos anos destruiu a política de combate ao trabalho infantil, que viu, novamente, os semáforos se encher de crianças e de pais exploradores de menores, a pedir esmolas e a fazer todo tipo de atividades precárias em troca de moedas, sob sol escaldante ou chuva torrencial, sob frio ou calor, de dia ou a noite.

Por onde anda os Conselhos Tutelares (tão renhidamente disputados ultimamente), o Ministério Público, as administrações municipais e estaduais que não coíbem a exploração de menores, inclusive a exploração sexual, a exposição de corpos de crianças que deveriam estar nas creches e nas escolas em cruzamentos, praças, meios-fios, calçadas.

Voltamos a ter a presença de crianças a pedir um pouco da nossa comida ou que compremos algo para elas comer em restaurantes, lanchonetes, padarias, supermercados, quase sempre enxotadas por seguranças, garçons e proprietários, como não se faz mais hoje nem com os cachorros humanizados transformados em pets, com direito, inclusive, a lugares nas aeronaves de resgate dos brasileiros da zona de guerra.

Que futuro pode ter um país, que futuro pode ter uma espécie, que massacra seus filhos e filhas, que mata suas crianças, que as submete as condições mais precárias e abjetas de existência? Com que futuro pode sonhar aquele garotinho palestino trêmulo de medo com as bombas e as explosões de tudo a sua volta? Me revolta, a ponto de virar meu estômago, o uso político que tanto palestinos, quanto israelenses, vêm fazendo das imagens dos cadáveres de crianças, das crianças mutiladas e feridas, das crianças em pânico e em desespero.

São desprezíveis esses adultos que provocam esse massacre de corpos infantis e que depois ainda tentam usá-los em sua propaganda política abjeta. A vida dessas crianças clama aos céus, não importando que tipo de Deus cada um considera que o habita. A morte delas por motivos políticos e religiosos, a permissão para que elas morram, colocam muito mais em dúvida a existência de qualquer Deus para quem se possa recorrer. A sensação é de desamparo e solidão absolutos. De Absoluto parece só haver o mal.



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