Brasil, a primavera vai chegar

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Nunca, na história desse país, ansiamos tanto pela chegada da primavera. Nunca precisamos tanto de tudo aquilo que essa estação do ano simboliza, de tudo aquilo que, cultural e imaginariamente, associamos a esse período do ano.

A primavera simboliza o renascimento da vida, o revivescer da natureza. Depois de um longo período assombrados pelo signo da morte, pelo desejo de morte, pela valorização e atração pelo morrer, esperamos que essa primavera nos traga a afirmação do valor da vida, a possibilidade de um novo viver, de um viver diferente, um viver desassombrado, um viver sem a ameaça da morte, sem a possibilidade do morrer. Uma vida mais qualificada, um viver sem a ameaça das armas, da fome, da violência, da truculência, da exploração e do preconceito desabridos e militantes.

Esperamos que nessa primavera nasça um novo país ou que pelo menos seja vitoriosa a ideia da possibilidade de um país diferente, menos desigual, mais justo, menos excludente, menos conflitivo e violento. Esperamos que após um parto difícil, se escute os vagidos de dias melhores, de menos gritos de dor e de desespero.

Desejamos que do choro de tantos, das lágrimas por tantos derramadas, venha à luz uma nova sociedade, mais solidária, menos mesquinha, menos individualista. Alentamos a esperança que seja partejada uma sociedade mais democrática, menos autoritária e hierárquica, que nasça nessa primavera um país-criança diferente do bebê de Rosemary que nos foi entregue quatro anos atrás.

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Na primavera toda a natureza reverdece, tinge-se de cores. Depois de um período cinza, de um período sombrio e lúgubre de nossa história, estamos desejosos do colorido da primavera. Estamos desejosos que pessoas de todas as cores tenham os mesmos direitos, sejam tratados com respeito e dignidade. Independente da cor da pele, que as pessoas possam ter as mesmas oportunidades de acesso ao emprego, ao salário, a educação, a saúde, a cultura. 

Que nossas vidas passem a ter o vívido e a alegria do verde. Que elas possam experimentar o verde da esperança, da espera pela realização do sonho e dos desejos. Que sejam tempos de defesa do verde de nossas florestas, de nossas matas, depois do tempo dos desmatamentos e das mamatas. Que sejam tempos em que o verde de nossa bandeira volte a ser de todos, não o símbolo de uma facção que deseja a exclusão e a eliminação de quem não pensa como eles.

A primavera simboliza a saída do frígido inverno. Esperamos que esse país que entrou numa fria, que entrou numa gelada, desde pelo menos 2016, possa viver dias mais cálidos, mais agradáveis. Esperamos que o calor humano possa ser a tônica desse novo tempo que há de chegar com a primavera. Esperamos que as pessoas se aproximem, se vejam próximos e como próximos, que partilhem e distribuam energia e afeto. 

É preciso quebrar o gelo, haver colaboração e parceria para reconstruir o destruído, para refazer tudo o que foi desfeito e malfeito. Sem abrir mão das diferenças, das singularidades de ideias e pontos de vista, fazer a aproximação possível para descongelar o crescimento econômico do país, para aquecer a geração de emprego, para dilatar as oportunidades de ascensão social, para acalentar novos objetivos e metas. Para superarmos a frieza tumular de quem esteve no leme até agora, a frieza psicótica de gente sem sangue nas veias e sem coração, é preciso que novos ventos soprem nessas plagas.

A primavera é a época dos perfumes e das fragrâncias, dos olores a se expandirem pelos ares. Ela anuncia a chegada de tempos menos insípidos e menos pestilentos. Vivemos tempos em que tudo parece cheirar mal, em que o odor de morte parece tomar conta de tudo. Vivemos uma quadra em que parece que todos os esgotos foram destampados e todas as sentinas nacionais vieram à tona. Estamos atolados em uma verdadeira cloaca política, de onde emanam os miasmas mais purulentos. 

A atmosfera social e política do país nunca esteve tão carregada, parece haver uma nuvem de maus eflúvios a se expandir em torno de nós. Esperamos que a primavera possa nos trazer ares menos carregados, um novo horizonte onde possamos visualizar novos tempos. É preciso passar a podridão a limpo e desenterrar todos os cadáveres que andam empestando a vida brasileira. É preciso que respiremos novos ares, que janelas e portas, que guardam sigilos intermináveis, sejam abertas, para que a fedentina que possa aí haver possa ser sanada e dispersada.

A primavera é a estação das flores, em que a natureza se veste de beleza e graça. Depois de tempos tão feios, tão obscuros, tão sem graça, ansiamos, como nunca, pela chegada da primavera. É nossa esperança que ela substitua o culto do horror, da tortura, da ditadura, do terror, pelo culto da formosura, pelo culto da atração, da empatia, da irmanação, da democracia. Esperamos superar os tempos da liberdade garantida pelas armas, por tempos em que a liberdade seja garantida pela luta e pelo engajamento político de todo dia.

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Precisamos superar a feiura da miséria, do abandono, da injustiça, das vidas precarizadas e vulnerabilizadas. É preciso que a primavera nos livre de um tempo de desgraças, um tempo marcado por uma estética do fascismo e da supremacia branca. É preciso que essa primavera traga de volta a aceitação e o respeito pelo colorido diverso de nosso povo e de nossas bandeiras políticas. Que essa primavera permita o desabrochar de um outro país, que brotem novas possibilidades de sermos outra sociedade, outra cultura, outra civilização. Uma sociedade que inclua e acolha a diversidade que somos, o multicolorido de nossas peles, de nossas roupas, de nossos cultos, de nossas festas, de nossas danças, de nossas crenças, de nossas formas de amar, de nossas formas de desejar, de nossas maneiras de pensar e de atuar.

A primavera representa o momento da fertilidade, em que a semente adormecida desperta para a germinação. Esperamos que essa primavera nos traga o fruto de todas as sementes que foram plantadas, que foram jogadas no solo desse país, na busca por uma cultura de direitos, de justiça, de igualdade, de paz, de aceitação da diferença. Que o trabalho de todos aqueles que plantaram, apesar do inverno que sobre nós se abatia, frutifique. Desejamos que a resistência que se fez ao obscurantismo e à ignorância, à desinformação e à mentira, ao negacionismo e à má-fé deem seus frutos nessa primavera que se avizinha. 

Sonhamos que os plantadores infatigáveis de utopias e de esperanças, que os que cultivaram em seu pequeno quintal a semente da mudança, possam ver surgir nem que seja o frágil broto de novos tempos. Sabemos que a primavera embora, por vezes, possa parecer até um milagre, não é disso que se trata, ela apenas abre uma nova estação, um novo tempo em que a semeadura se torna possível e a colheita se torna mais provável.

Não há germinação sem plantio, sem que a semente seja atirada ao solo, sem que seja adubada, sem que receba o refrigério da chuva e o calor do sol. A primavera que se avizinha será tempo de muito trabalho, de muito cultivo, de muito esforço para que façamos de nossos sonhos sementes que consigam abrolhar.

A primavera é tida como a estação do amor, do acasalamento, da procriação. A primavera afirma a dimensão produtiva e criativa da natureza. Depois de um tempo mergulhados no cultivo do ódio, do ressentimento, da raiva, da ignorância, da brutalidade, do desamor, esperamos que a primavera nos traga tempos de sabedoria, de amizade, de parceria, de criação e de invenção de um novo país.

Esperamos que as forças criativas desse país se acasalem, se encontrem, troquem gestos construtivos e produtivos. Precisamos entrar num tempo regido por eros, em que não tenhamos medo pânico de nossos corpos e de nossos desejos, que não mortifiquemos nossas carnes e passemos a desejar a morte. Precisamos sair do tempo da brutalidade, do enrijecimento militar de nossas carnes e de nossas mentes. 

Precisamos que a primavera nos traga a beleza do ondear e do serpentear dos trigais e dos canaviais expostos ao vento, a beleza do côncavo e do convexo, da curva que permite partilharmos a beleza do redondo. Precisamos que nessa primavera o amor vença o ódio, que a criação se sobreponha a destruição. Precisamos que os deuses do amor se sobreponham ao Deus da negação e da proibição, do castigo e da punição. Desejamos que a primavera nos traga os deuses pastorais, brincalhões em meio as flores e as sebes, os deuses alegres e gratuitos e não o Deus raivoso e carrancudo, que cobra em dízimos sua presença.

No dia 22 de setembro começaremos a viver uma primavera que esperamos seja prenhe de boas novas, que seja dadivosa para esse país, que ela traga o novo tempo e os novos ares que precisamos, depois do longo e penoso inverno que vivemos. Tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais!



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