A filósofa norte-americana Judith Butler coloca o luto no centro da reflexão ética e política a ser feita em nosso tempo. Ela aborda o fato de que em nossas sociedades há vidas cuja perda é motivo de lamento, mas na mesma ou em maior proporção há vidas cujo desaparecimento não é passível de lamentação ou pranto. Viveríamos num mundo em que há uma profunda diferença entre as vidas enlutáveis e as vidas não enlutáveis. O trabalho do luto, tal como pensou Freud, é fundamental para que assimilemos as perdas, para que consigamos lidar com a morte. Mas para Butler, o luto é mais do que uma forma de psicologicamente absorvermos a perda, a morte de entes queridos, o luto implica em rituais públicos de reconhecimento e homenagem ao ser que partiu.
Quando fazemos o luto, através de gestos, práticas, cerimônias, quando vestimos e pranteamos o luto, estamos dando testemunho para toda a sociedade que aquela vida tinha valor, que, por isso mesmo, foi uma perda a ser lamentada por todos. Fazemos o luto, publicamente, para dar testemunho do quanto aquela vida era importante para todos, o quanto ela era merecedora de reconhecimento e de memória, era uma vida a ser lembrada, comemorada, monumentalizada. Quando deixamos de fazer o luto, quando vidas são perdidas sem que ninguém as lamente, sem que ninguém chore por elas, sem que mereçam rituais públicos de enlutamento, está se dizendo que essas vidas não tinham valor social, que essas vidas não importavam, que elas não passavam de um fato orgânico, biológico, mas não tinham expressão social, coletiva.
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Em toda a vasta produção cultural acerca do Nordeste a morte é uma temática constante. O poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, em seu poema Morte e vida Severina, chega a afirmar que a principal indústria da região era a indústria da morte, o Nordeste seria uma fábrica de mortos, a cultura que aí mais safrejava era o cultivo da morte. Vários de seus poemas recebem o título de cemitérios, inclusive um deles se nomeia “Cemitério geral”. Mas a própria designação de que a morte dos nordestinos pobres, dos nordestinos comuns, dos nordestinos retirantes seria uma morte severina, ou seja, uma morte tão comum e tão banal, quanto o nome Severino, para nomear as pessoas na região. A morte de tão cotidiana, de tão comezinha, de tão generalizada, era banalizada e, portanto, era uma morte para a qual já não se derramava uma lágrima. De tão repetitiva e naturalizada, era uma morte não pranteável ou somente pranteada pelos profissionais da morte, como as carpideiras, que, como toda profissão, havia surgido da necessidade repetida de se chorar mortos tão comuns e constantes. O Nordeste era um campo fértil para os trabalhos da morte, únicas atividades com remuneração assegurada.
Não por acaso, são os coveiros que sabem fornecer uma perfeita descrição das hierarquias sociais, da ordem social da região, que se manifestava, que ficava visível nas próprias diferenças entre os defuntos, uns poucos muito gordos, de caixões ricos e amplos, enterrados em mausoléus, sob verdadeiros alagadiços de lágrimas, mesmo que muitas fossem “lágrimas de crocodilo” e uma grande maioria de defuntos tão magros que conseguiam ser enterrados, em grande quantidade, nas covas rasas localizadas no fundo do cemitério, próximo a seus muros. Defuntos a merecerem poucas lágrimas, enterrados sem maiores pompas, rapidamente tragados pela terra, que tanto ansiaram cultivar, que tanto sonharam em vê-la dividida.
João Cabral de Melo Neto trata, mesmo que não fosse contemporâneo das reflexões de Judith Butler, do fato de que os nordestinos, quase sempre identificados como sendo os homens e mulheres pobres, os migrantes, os retirantes, são vidas não enlutáveis na sociedade brasileira. O nordestino comum, o “cabeça-chata”, o “paraíba” e “o baiano” não são dignos de luto, não são vidas que possuem valor.
O próprio fato de que a vidas dessa parcela da população brasileira eram vidas precárias, eram vidas que já nasciam à beira da morte (Nordeste terra da mortalidade infantil, do anjinho morto e enterrado na rede puída e mijada onde vivera seus poucos dias, meses ou anos de vida), vidas que quando vingavam eram uma vitória, improvável, contra a quase certeza do morrer, tornava a morte um fato corriqueiro, não instaurando a necessidade do luto. Quando a morte não é um corte com a vida, quando ela é quase uma extensão dela, quando ela não é o infortúnio e o inesperado, mas a única fortuna que se pode esperar e a sua espera é quase certeza de chegar, o luto não se instaura como momento excepcional, mas se incorpora a normalidade da vida social, torna-se luto permanentemente não realizado.
A morte de milhares de nordestinos, durante as secas periódicas, de fome, de sede, de epidemias, nunca comoveu ou foi motivo de luto nacional. Os cadáveres que se acumulavam, em pele e osso, à beira das estradas, das ferrovias, nos campos de concentração, nos abarrancamentos, nunca mereceram, sequer, uma cerimônia cristã de enterramento. Como vimos, recentemente, na pandemia do covid-19, vidas que não importam, vidas que, socialmente, são por definição vidas matáveis, vidas que podem morrer ou serem mortas, eram jogadas nas valas comuns, eram apenas restos biológicos, carnes em putrefação que deviam ser enterradas para evitar a pestilência, para desaparecerem rapidamente das vistas e não chegarem a doer nas consciências.
Vidas que não se constituem em corpos políticos, que não fazem parte da cidadania, que não fazem parte, muitas vezes, sequer, da espécie, pois são desumanizadas, são vidas expostas e devotadas a morrer (bandido bom é bandido morto, segundo os nossos fascistas de todos os dias). As vidas que não possuem direitos, que são vistas como vidas menores ou defeituosas, como anomalias ou anormalidades, estão sujeitas a morte sem lamento, a morte sem luto, a morte banal, que merece, no máximo, a curiosidade e a bisbilhotice de transeunte, ou a morbidez das manchetes sensacionalistas da grande mídia, que se alimenta e lucra com a humilhação pública, com a exposição desses corpos transformados em mera carne para o açougue diário do jornalismo sem escrúpulos.
As travestis, os transexuais, os homossexuais, os pobres, os pretos, os favelados, os nordestinos, fazem parte dessas espécies de vidas não enlutáveis. Vidas que merecem, no máximo, a exposição pornográfica em segundos de TV ou em fotos de primeira capa, para serem imediatamente esquecidas no dia seguinte, quando a imagem de outra vida desafortunada vier substituí-las.
O ritual do luto confere dignidade e afirma a humanidade, o pertencimento a espécie àquele que é pranteado. Não se faz luto por um estranho, por um estrangeiro, por alguém pelo qual não se tem afeto ou empatia. Ao estranho devotamos mais hostilidade e medo do que hospitalidade e receptividade. Esse é um dos grandes dramas em uma época de globalização, de presença constante do estrangeiro entre nós, momento de grandes migrações, de misturas e hibridismos.
O nordestino foi e continua sendo, esse estranho que chega, esse migrante que aporta na nova terra, esse ser diferente que vem disputar vagas no trabalho, no transporte público, nas pensões e hospedarias, que vem ocupar terrenos, que vem concorrer no mercado afetivo e do sexo.
Se esse estranho aparece morto, o que vai importar? Não será vergonha sentir uma certa sensação de alívio, baseada na certeza que essa vida não merecia permanecer viva, com certeza algo de errado fez para merecer o fim que teve. Os vizinhos cochicharão alguns dias na busca por explicações que serão ao mesmo tempo justificativas para apaziguarem suas consciências. Chorar por essa vida, lamentá-la, realizar rituais em seu luto, está fora de consideração.
Os nordestinos, muitas vezes, são aquelas vidas que atrapalham, que estão fora de lugar, que não deveriam existir (morreram no deslizamento de encostas porque não previram o futuro, porque saíram de suas terras para se pendurarem nos morros; morreram na enchente porque foram morar na beira do rio, foram imprevidentes, porque essa gente não ficou na sua terra, lá pelo menos não chovia, não tinha enchentes ou deslizamento). A prova maior de que essas vidas não deveriam existir são as campanhas de esterilização dos mais pobres, das negras, das nordestinas, que têm “filhos como coelhos”, que “ficam colocando filho no mundo para virar marginal”.
Na lógica dessas cabeças não é a ordem social que marginaliza, os marginais já nascem assim, são marginais por natureza, daí a necessidade de impedir que essas vidas venham ao mundo. Nordestinos teriam filhos demais, depois viriam com essa reca de filhos para os grandes centros urbanos do Sul para virarem bandidos, se alguns deles morrem, se muitos deles morrem, é normal, que diferença faz, que responsabilidade teria a sociedade e o Estado? O pensamento eugenista, que muitas vezes aparece em formulações acerca dos nordestinos, baseava-se explicitamente na ideia de que havia vidas a ser estimuladas e preservadas e haviam seres vivos que deveriam ser esterilizados, exterminados ou, no mínimo, impedidos de nascer, de se reproduzir.
Existiria uma hierarquia entre vidas e seres superiores e inferiores, e as formas inferiores de existência deveriam ser desestimuladas. A morte dessas formas de vida não era motivo de luto, mas um verdadeiro benefício para a nação, para a sociedade. Foi essa forma de pensar que resultou no extermínio dos judeus e nos campos de concentração nazistas. Não é preciso lembrar que, antes deles, os nordestinos conheceram a forma campo de concentração e, neles, a banalização da morte, a morte em escala industrial, sem pranto, sem choro, sem vela, a morte de milhares de seres humanos que não mereceram sequer o luto público, o luto oficial, nem mesmo o registro historiográfico, essa outra forma de realizarmos o trabalho do luto. Quando a pulsão de morte nos governa, quando um governo foi conivente com a morte de milhares de pessoas sem dar a elas o direito ao luto, vidas que não mereceram do governante sequer uma lágrima ou uma visita protocolar, apenas o deboche e a imitação desrespeitosa, é preciso que voltemos a valorizar o ritual do luto, afirmar o fato de que toda e qualquer vida humana, por mais distante e diferente de nós, merece o respeito e a dignidade do luto, sob pena de nos desumanizarmos, de deixarmos de ser humanos ao não reconhecermos a humanidade do outro.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.