Família: criação do amor, argumento do ódio
É preciso deixar claro, logo de saída, que família é um conceito e, como todo conceito, pode ter diferentes significados, diferentes sentidos
A família está no centro do debate político brasileiro. Desde as eleições de 2018, que a extrema-direita se utiliza do argumento da defesa da família, para legitimar e justificar sua pauta reacionária e seu discurso de ódio, de abjeção a dadas pessoas, instituições e ideias. Os políticos, os líderes religiosos, as instituições, identificados com o pensamento de extrema-direita, não cansam de se colocarem no papel de defensores da família, de guardiões morais da vida familiar, de sentinelas contra o que chamam de dissolução dos laços familiares.
É preciso deixar claro, logo de saída, que família é um conceito e, como todo conceito, pode ter diferentes significados, diferentes sentidos. Quando ouvimos falar de família é preciso sempre nos perguntarmos de que estamos falando, qual a concepção de família que está sendo empregada ou levada em conta. Como todo conceito e, como toda instituição social, a família passou e passa por transformações ao longo do tempo, tanto em sua concepção, quanto em sua realidade.
À pergunta, o que é uma família?, as respostas mudaram, ao longo da história, tanto porque o conceito de família mudou, a maneira de concebe-la, quanto os arranjos familiares, as formas de se constituir e de ser família mudou, notadamente nas últimas décadas. Não existe uma única forma de se pensar a família e não existe uma única forma de viver a família.
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O que a extrema-direita faz, o que o bolsonarismo faz, por exemplo, é tentar impor o seu conceito de família, um dado modelo idealizado de família, como sendo “a verdadeira” família, a única forma legítima e aceitável de se constituir laços e relações familiares. Embora o próprio líder não possa ser tomado como um exemplo, quando se trata da vida familiar, pois tem trocado de esposa com certa frequência, a defesa da família não sai da boca da liderança e dos liderados.
A família nuclear, monogâmica, heterossexual, juridicamente constituída, seria o único modelo aceitável de família, mesmo que o próprio ordenamento jurídico brasileiro, mesmo que o próprio Supremo Tribunal Federal, tenham ampliado a noção de família, para incluir as uniões estáveis (antes pejorativamente denominadas de concubinato ou mancebia, que nos dicionários ainda possuem o sentido de comportamento dissoluto, de vida desregrada, de impudicícia e imoralidade), os grupos familiares compostos por apenas um genitor ou cuidador adulto e crianças (não importando que sejam procriadas ou adotadas) e as uniões homoafetivas.
Creio que seria fundamental iniciar qualquer debate acerca do que seja uma família se perguntando não pelo modelo, pelo o que é uma família, mas se perguntando sobre o que leva a uma família a se constituir, qual a motivação do estabelecimento dos laços sociais e das relações sociais que constituem e caracterizam um grupo como familiar.
Em debate recente, no canal Fórum, no Youtube, acerca do livro que acaba de lançar em parceria com Jean Wyllys, intitulado O que não se pode dizer: experiências do exílio, a filósofa Márcia Tiburi vai no que, para mim, é o âmago da questão. Ela afirma que é família toda união que se baseia no amor, todos os laços e relações sociais entre pessoas que se amam.
Portanto, mesmo uma família tida como modelar (nuclear, heterossexual, monogâmica, jurídica e religiosamente reconhecida) pode não ser verdadeiramente uma família se não há amor mediando os laços e relações que aí se estabelecem. Uma família formalmente exemplar pode na prática não existir se foram outras as motivações e interesses que vieram a unir o casal (interesses econômicos, políticos, a busca por status ou por encenar uma relação tal como a ordem social espera).
A presença do amor entre os parceiros que formam uma família, independente de gênero, etnia, condição social e de classe, condição etária, origem geográfica de seus membros, deveria ser visto como sendo o critério fundamental para se separar uma família de fato de uma família apenas de direito. A presença do amor também deveria ser o critério fundamental para se definir e legitimar as relações de filiação e descendência. O mais importante para se definir o que seria a maternidade e a paternidade deveria ser a capacidade de se devotar amor aos filhos e filhas, independentemente de eles serem naturais ou por adoção. Deveria ser visto com muita normalidade que uma família permanecesse unida somente e enquanto haja a presença do amor.
Os conservadores de todos os quadrantes, notadamente as autoridades religiosas, tendem a cobrar a indissolubilidade dos laços familiares, mesmo quando o que há entre os parceiros é ressentimento e indiferença, quando não raiva e ódio. O Brasil foi um dos últimos países do mundo ocidental a aprovar a instituição do divórcio. Muitos conservadores preferem alimentar relações atravessadas pela mentira e pela hipocrisia (faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço), em detrimento de relações familiares efetivas que são aquelas que existem enquanto o amor existe.
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Se como afirmou, nessa entrevista, Márcia Tiburi, “o amor é aberto, o amor é acolhedor”, e eu diria, se o amor é generoso, ele rejeita a intolerância, o preconceito, a exclusão, a abjeção. Ele rejeita qualquer forma de discriminação e preconceito, ele não permite que se legitime separações e hierarquizações entre o que seria uma verdadeira família, uma família normal, uma família aceitável e famílias que não seriam de verdade, que não seriam normais e aceitáveis.
Inaceitável deveria ser o desamor, a violência, a agressividade, o preconceito que, infelizmente, se fazem tão presentes no interior das famílias que, pretensamente, correspondem ao padrão esperado. Não podemos aceitar que em nome da “defesa” de um dado modelo idealizado de família, crianças necessitadas de adoção, de encontrar alguém que lhe acolha, que lhe dê amor, que lhe dê o sustento material e emocional, não possam ser adotadas por pessoas solteiras ou por casais homossexuais.
O preconceito conservador contra essas situações que já são legalmente previstas, mas que sofrem inúmeros óbices cotidianos para se efetivar, no seio do próprio aparelho de justiça, por causa da má vontade de agentes que obstaculizam a efetivação da lei e do direito baseados em suas convicções religiosas ou morais, deve ser denunciado e combatido, em nome da vitória do amor, um amor que não é mero recurso retórico ou uma ideia abstrata, mas um amor que se efetiva na ação.
Muitos dos que vivem com a palavra amor na boca, que vivem falando, inclusive, do amor de Deus, são, na verdade, veiculadores do ódio, do desamor, do desafeto, ao pregarem em defesa de um modelo de família tido como correto e pretensamente o único abençoado por Deus (é incrível como tem gente que se arvora a porta-voz da divindade, como sabem o que Deus quer ou não).
Na verdade, essas pessoas colocam na boca de Deus, interpretam o que seria suas palavras a partir de seus conceitos e preconceitos, de seus próprios valores, terrenos e humanos, demasiadamente humanos. Em muitos casos, como no rumoroso caso da líder religiosa e política Flordelis, uma vida familiar pretensamente exemplar, uma vida familiar presidida pelos valores cristãos, pelos valores tradicionais, se mostrou na realidade uma vida familiar atravessada por interesses de toda ordem, por rivalidades, pela raiva, pelo ressentimento, pelo ódio assassino. Há, inclusive, em muitos casos, verdadeiro ódio ao amor do outro, ressentimento e inveja em relação a felicidade amorosa do outro. Muitos discursos de crítica as famílias homoafetivas não passam de discurso de despeito e de raiva pela felicidade amorosa do outro.
Membros ou pessoas que advém de famílias fracassadas, de famílias que não foram na prática núcleos familiares, por serem incapazes de prover amor, carinho, cuidado, por suas relações e laços não estarem sustentados e constituídos pelo amor, pela dedicação ao outro, pela capacidade de se abrir para a diferença e a singularidade do outro, pela capacidade de acolher afetuosamente a diversidade de vidas e trajetórias pessoais que a constitui (aquele casal que é capaz de recepcionar com amor o filho ou a filha que não correspondem, nem física, nem subjetivamente, ao que esperaram e idealizaram: o filho autista, com síndrome de Down, com deficiência física ou mental, o filho ou a filha homossexual, transexual, intersexual, etc.), podem vir a ser os mais intolerantes e preconceituosos em relação aos arranjos familiares que fogem do padrão hegemônico.
Curiosamente, a maioria daqueles que transformam a família, uma instituição que só faz sentido, que só existe efetivamente, se for constituída por laços amorosos, em argumento para discursos de ódio, de intolerância, de preconceito, de discriminação, são filhos de famílias ditas tradicionais, são filhos de famílias pretensamente padrões e modelares, que, no entanto, fracassaram na sua missão de educar para o construtivo convívio social, fracassaram na sua missão de socializar as crianças para a convivência civilizada e amorosa com os seus semelhantes e com o próprio mundo.
Os paladinos da “defesa da família”, muitos deles tomados pela infelicidade, pela frustração, pela inveja em relação ao amor e a felicidade do outro, realidades que nunca conheceram, não cansam de incitar à discriminação, ao preconceito e ao ódio contra aqueles que amam diferente, que amam os diferentes, que amam os outros, aqueles que demonstram, assim, maior capacidade de amar, maior abertura e generosidade ao amar, porque amam não o seu próprio rosto, amam não a uma versão de si mesmos, amam não o seu próprio umbigo, mas são capazes de devotar amor a quem deles difere, a quem é estranho a eles, a quem é diverso deles. A família deve ser a reunião amorosa dos diversos e dos diferentes, em qualquer aspecto que levemos em conta (físico, social, cultural, educacional, étnico, de gênero, de faixa etária, etc).